São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

Que o grande Chico me perdoe...

"Desadverbializado", o "lá" vira substantivo -e sujeito do quarto verso ("Lá não figura no mapa"). O nome de lá é "lá"!

ESTIVE NA PENÚLTIMA edição do "Altas Horas", comandado por Serginho Groissmann. Entre as tantas boas perguntas vindas da atenta platéia, uma me fez cometer um lamentável deslize. Explico: uma garota me pediu comentários sobre letristas da nossa música popular. De imediato, avisei que era grande a possibilidade de eu cometer injustiças; depois, comentei o belo trabalho de vários dos nossos poetas musicais. E não é que sofri um apagão? Simplesmente me esqueci de Chico Buarque...
Lamentável!
O mundo viu o programa, e, passados mais de dez dias, a cobrança não termina ("E o Chico?"). Ainda bem que tenho o passado -colunas e mais colunas, programas e mais programas na Rádio e na TV Cultura- como prova de que sempre exaltei o brilhantismo poético-lingüístico de Chico Buarque. Mas não custa aproveitar a ocasião para aumentar o exemplário sobre o autor de letras do quilate de "Até Pensei", "Paratodos", "Construção", "Sábia", "Ode aos Ratos" e outras tantas que analisei neste espaço, no rádio ou na tevê.
Vamos lá, pois. Faz tempo que quero escrever sobre a letra de "Subúrbio", particularmente sobre estes versos, que iniciam a canção: "Lá não tem brisa / Não tem verde-azuis / Não tem frescura nem atrevimento / Lá não figura no mapa / No avesso da montanha, é labirinto / É contra-senha, é cara a tapa".
Releia o trecho, por favor, e note o que Chico faz com o vocábulo "lá". Normalmente usado como anafórico (termo que se refere a um elemento anterior - "Estive em Roma e lá encontrei..."), o advérbio "lá" inicia a letra de Chico retomando... Pois o golpe de mestre está aí. Teoricamente, o "lá" da letra retoma o título da canção, que, como já vimos, é "Subúrbio", mas o título é o título, não é uma palavra do texto, não aparece na letra antes de "lá" e, salvo engano, não aparece em nenhum momento da letra. Com isso, o que seria anafórico parece tornar-se catafórico (termo que se refere ao que será enunciado adiante), ou seja, quem ouve a música sem saber o título pode logo se perguntar "onde é lá?".
Mas o fato é que, no fundo, no fundo, o "lá" acentua a idéia de abandono, de isolamento do subúrbio e de sua gente, "aquela gente toda". O ápice do brilho dos versos iniciais da letra de Chico, no entanto, ainda não chegou; chega quando, "desadverbializado", o "lá" vira substantivo -e sujeito do quarto verso ("Lá não figura no mapa"). O nome de lá é "lá"! (E "Lá tem Jesus / E está de costas".) Registre-se que Chico "desanonimiza" o "lá" ao identificar os integrantes do subúrbio ("Fala, Penha / Fala, Irajá / Fala, Olaria" / "Fala, Acari").
A competência poético-lingüística de Chico lhe permitiu criar um raro caso de derivação imprópria, processo pelo qual se forma uma palavra não pelo acréscimo de prefixo ou sufixo (feliz/infeliz/felicidade) ou pela eliminação de sufixo e acréscimo de vogal temática (atacar/ataque), mas por meio da mudança da categoria gramatical sem a mudança da forma (em "Meu barracão no Morro do Salgueiro tinha o cantar alegre de um viveiro", da letra de "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa -a música é de Silvio Caldas-, o normalmente verbo "cantar" passa a substantivo, o que também é exemplo de derivação imprópria).
Vista sob o contexto da poesia, a criação morfossintático-semântica -única!- de Chico é simplesmente memorável. E viva Chico! É isso.


inculta@uol.com.br

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