São Paulo, domingo, 15 de julho de 2001

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SEM FRONTEIRA

Além de diversão, imigrantes procuram emprego e orientação de conterrâneos em feira aos domingos no Pari

Praça de SP vira "embaixada" da Bolívia

CÉLIA CHAIM
DA REPORTAGEM LOCAL

Onze horas da manhã de domingo e eles já começam a montar suas barracas ao redor da praça Padre Bento, no centro do bairro do Pari, região central de São Paulo. O cheiro de tempero picante de comida típica toma conta do ar, assim como o som do grupo Kjarkes, o sucesso do momento nas emissoras de rádio em La Paz, a capital da Bolívia. Os bolivianos, com ou sem documento legal, estão chegando para o seu sagrado encontro dominical.
São 6.000, 7.000, 8.000 pessoas que passam por lá até o fim da festa, lá pelas 21h, segundo cálculos do sargento Felix, da Polícia Militar. "Aqui é La Paz", ele diz.
Os vizinhos reclamam. Dona Gê colocou grade na pequena entrada de sua casa para impedir a proximidade dos embriagados. "Eles bebem demais e fazem muito barulho", ela diz. Não conseguiu, porém, impedir que seu muro e o de seus vizinhos se transformassem num banheiro a céu aberto. Os bolivianos adoram cerveja.
Não por acaso, a praça foi rodeada de bares para a imensa comunidade boliviana que vive em São Paulo e lá se apinha não só para matar a saudade de sua terra com seus conterrâneos como para procurar emprego, trocar informações sobre documentos, arranjar um lugar para morar, receber orientação dos imigrantes veteranos, ganhar algum dinheiro na barraca, que pode ser de alimentos, sucos, malhas, cereais, especiarias (como a picante "locoto", uma espécie de pimenta).
A feira, ainda não regularizada pela prefeitura, funciona ao redor da praça e é dando voltas em torno dela que os bolivianos revivem o velho "footing" das praças das cidades de interior. Não há coreto com bandinha, mas a música boliviana folclórica, que se intercala com alguns hits do rock, garante uma trilha sonora animada. Há vendedoras com trajes típicos e, aqui e ali, uma bandeirinha verde, amarela e vermelha a sinalizar que estamos num improvisado território boliviano.
Há pouco artesanato na Padre Bento e muitos CDs por R$ 5. Tudo parece barato. Custa R$ 2 o quilo da fava fresca, R$ 0,50 o generoso copo de "chica de mani" (suco de amendoim) ou de "khisa" (pêssego seco), menos de R$ 30 a malha de lã grossa o bastante para enfrentar o frio boliviano, em torno de R$ 3 a disputada cumbuca de "fricassê", versão longínqua da feijoada brasileira, um guisado de carne de porco em pequenos pedaços, com milho, batata e muita pimenta.
Eles contam que há sempre um novo boliviano chegando a São Paulo com a mudança, com a mesma esperança de melhorar de vida. Se for pobre, seu primeiro passeio será a feira da Padre Bento, uma espécie de embaixada. Depois vem a mulher, a criança, a sogra, a mãe ...e o número nunca pára de crescer. "Houve épocas em que fazíamos aqui um campeonato de futebol com 20 times bolivianos", conta um deles.
Há um cálculo recorrente entre eles sobre o total de bolivianos em São Paulo: pelo menos, 70 mil. Os mais exagerados falam em 100 mil pessoas.
Ninguém arrisca contestar porque ninguém consegue contá-los. A grande maioria se esconde nos milhares de confecções coreanas que congestionam os subterrâneos do Brás, trabalhando e vivendo ilegalmente -como seus patrões- num esquema de escravidão, das 6h, 7h até tarde da noite, em troca de um salário que, no máximo, alcança R$ 500 ao final do mês se o nível de produtividade ultrapassar a fronteira da escravidão. Fala-se que funcionam pelo menos 30 mil confecções nessas condições em São Paulo.
Os coreanos são espertos. Saem da toca aos domingos para colocar anúncios na praça Padre Bento em busca de costureiros e costureiras bolivianos que estão à procura de trabalho.
Não tem registro, não tem férias, não tem 13º salário, não tem nenhuma garantia, mas é o que garante a sobrevivência nesta terra que foi escolhida para escapar da miséria da Bolívia.
Hoje, quem passar perto da praça Padre Bento verá, de graça, o que há de mais popular na dança e na música folclórica do país que divide uma extensa fronteira com o Brasil, do Acre a Mato Grosso do Sul, passando pelos Estados de Rondônia e Mato Grosso.
Os bolivianos estão ensaiando para a festa de sua padroeira, Nossa Senhora de Copacabana (eles também têm uma Copacabana, perto do lago Titicaca, dividido entre Peru e Bolívia), que acontece na primeira quinzena de agosto com uma autêntica "la morenada", a dança típica de La Paz.
Os bolivianos têm Nossa Senhora de Copacabana no céu e Clara Ant, a administradora da regional da Sé (que inclui o Pari), na terra que adotaram para viver. Descobriram que ela também nasceu na Bolívia e contam com a conterrânea para regularizar o espaço que ocupam aos domingos.
Com o apoio da Acomesp, eles querem fazer a feira se transformar numa atração turística, com música ao vivo, artesanato, culinária. Uma feira de verdade.
Só não pergunte aos bolivianos o que quer dizer a sigla Acomesp (Associação dos comerciantes ambulantes e prestadores de serviços em pontos fixos nas ruas e logradouros do município de São Paulo), que eles citam com frequência. Ninguém chega à metade da tradução.


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