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São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Crime clonado

 Erros de identificação condenam inocentes. Processos indevidos ocorrem quando criminosos "sujam" o nome de terceiros ao usar documentos roubados ou perdidos.
Cotidiano, 7.dez.2003

Ele perdeu a conta do número de processos criminais a que teve de responder; mais de dez, seguramente. No final sempre era absolvido, mas cada processo representava semanas ou até meses de incomodação: depoimentos, preparação da defesa com o advogado, julgamento, até. Um desgaste emocional que, como dizia à esposa, estava acabando com a vida dele.
E o pior é que tudo resultara de um erro de identificação. Anos antes, seus documentos haviam sido roubados. A partir daí um homem assumira sua identidade. E usara essa identidade para emitir cheques frios, para dar golpes na praça e até para assaltar uma loja. Nunca fora preso, mas as testemunhas concordavam num ponto: os dois eram parecidíssimos. Ou seja, ele tinha um clone criminoso.
Chegou a pensar em procurá-lo para um acordo; mesmo não sendo rico, ofereceria uma quantia mensal para que o outro parasse de complicar sua vida. A idéia era meio maluca, e pouco prática: como encontrar o clone? Colocando um anúncio no jornal? Divulgando uma mensagem pela internet? Absurdo.
Um dia, porém, ocorreu-lhe a solução. Ele tinha de combater fogo com fogo. Tinha de fazer com que o monstro provasse de seu próprio veneno. Tinha de incriminar o criminoso.
Não foi difícil. Começou passando cheques frios. Quando foi chamado à polícia, tinha pronta a explicação:
Os senhores sabem do que se trata. É aquele homem. Ele está sempre aprontando.
O delegado, que já conhecia o caso (quem não o conhecia?), teve de concordar. Ele ainda reclamou da polícia que não fazia nada para deter o criminoso. O delegado, com um suspiro, dispensou-o.
Cometer uma transgressão é como tirar azeitonas de um vidro: depois que se consegue extrair a primeira, as outras vêm facilmente. Seguiram-se mais cheques, mais falcatruas. Ele agora estava ganhando um bom dinheiro; tão bom, na verdade, que poderia até, se quisesse, fechar sua pequena empresa e dedicar-se só ao crime.
Mas então recebeu uma carta, escrita em letra de imprensa. Era do clone. Sei que você resolveu me imitar, dizia, e sei também que você está tendo êxito. Mas quero lhe avisar que esta situação está me levando ao desespero; sou um homem emocionalmente frágil e um suicídio não está fora de cogitação.
Por essa ele não esperava: um suicídio atrapalharia muito a sua nova e promissora carreira. Agora: criminosos são assim mesmo, inconfiáveis: traem quando menos se espera.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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