|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Crime clonado
Erros de identificação condenam
inocentes. Processos indevidos ocorrem quando criminosos "sujam" o
nome de terceiros ao usar documentos roubados ou perdidos.
Cotidiano, 7.dez.2003
Ele perdeu a conta do número de processos criminais
a que teve de responder; mais de
dez, seguramente. No final sempre era absolvido, mas cada processo representava semanas ou
até meses de incomodação: depoimentos, preparação da defesa
com o advogado, julgamento, até.
Um desgaste emocional que, como dizia à esposa, estava acabando com a vida dele.
E o pior é que tudo resultara de
um erro de identificação. Anos
antes, seus documentos haviam
sido roubados. A partir daí um
homem assumira sua identidade.
E usara essa identidade para emitir cheques frios, para dar golpes
na praça e até para assaltar uma
loja. Nunca fora preso, mas as testemunhas concordavam num
ponto: os dois eram parecidíssimos. Ou seja, ele tinha um clone
criminoso.
Chegou a pensar em procurá-lo
para um acordo; mesmo não sendo rico, ofereceria uma quantia
mensal para que o outro parasse
de complicar sua vida. A idéia era
meio maluca, e pouco prática: como encontrar o clone? Colocando
um anúncio no jornal? Divulgando uma mensagem pela internet?
Absurdo.
Um dia, porém, ocorreu-lhe a
solução. Ele tinha de combater fogo com fogo. Tinha de fazer com
que o monstro provasse de seu
próprio veneno. Tinha de incriminar o criminoso.
Não foi difícil. Começou passando cheques frios. Quando foi
chamado à polícia, tinha pronta
a explicação:
Os senhores sabem do que se
trata. É aquele homem. Ele está
sempre aprontando.
O delegado, que já conhecia o
caso (quem não o conhecia?), teve
de concordar. Ele ainda reclamou
da polícia que não fazia nada para deter o criminoso. O delegado,
com um suspiro, dispensou-o.
Cometer uma transgressão é como tirar azeitonas de um vidro:
depois que se consegue extrair a
primeira, as outras vêm facilmente. Seguiram-se mais cheques,
mais falcatruas. Ele agora estava
ganhando um bom dinheiro; tão
bom, na verdade, que poderia até,
se quisesse, fechar sua pequena
empresa e dedicar-se só ao crime.
Mas então recebeu uma carta,
escrita em letra de imprensa. Era
do clone. Sei que você resolveu me
imitar, dizia, e sei também que
você está tendo êxito. Mas quero
lhe avisar que esta situação está
me levando ao desespero; sou
um homem emocionalmente frágil e um suicídio não está fora
de cogitação.
Por essa ele não esperava: um
suicídio atrapalharia muito a sua
nova e promissora carreira. Agora: criminosos são assim mesmo,
inconfiáveis: traem quando menos se espera.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
Texto Anterior: Sistema aumenta chance de vaga para alunos pobres Próximo Texto: Consumo: Empresário pede cancelamento de faturas de celular à Embratel Índice
|