São Paulo, quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quando eu chego em casa..."

Um belo dia, aprendemos na escola que quem chega chega a algum lugar, quem vai vai a algum lugar, quem obedece obedece a alguém ou a alguma coisa, quem sobressai sobressai (e não "se sobressai") etc., etc., etc. Tudo isso nos é dito em inesquecíveis aulas de regência verbal.
Muitas vezes, falta a informação essencial: teoricamente, essas regências são as predominantes nos registros formais da língua; nas variedades não-formais, nem sempre a coisa segue esse modelo. Se tomarmos como exemplo o verbo "chegar", veremos que, na oralidade brasileira, costuma-se chegar em algum lugar. Qual é o brasileiro que, no dia-a-dia, não diz que chegou em casa, em Santos, no Japão ou na Europa?
Que fazer, então? Bradar aos quatro ventos que, por ser completamente estranha ao uso brasileiro, a regência "chegar a" deve ser fulminada etc.? Devagar com o andor, moçadinha. Por acaso não dizemos, também no dia-a-dia, frases como "Veja a que ponto ele chegou" ou como "Ele chegou ao cúmulo de dizer que..."?
Dizemos, sim -e como! No entanto, em textos técnicos, científicos, jurídicos etc., é patente o predomínio da regência "chegar a" sobre "chegar em". O fato é que a regência de um verbo pode mudar não só de acordo com o seu significado (o sentido de "trabalhar" em "trabalhar um livro" é diferente do que se vê em "trabalhar num livro", por exemplo), mas também de acordo com a variedade de língua empregada.
Não é por acaso que, em seu respeitado "Dicionário Prático de Regência Verbal", o professor Celso Luft quase sempre termina suas observações sobre as divergências entre os usos de certos verbos nos diversos registros lingüísticos com uma afirmação muito parecida com esta: "Na língua escrita formal culta, recomenda-se o emprego da sintaxe originária".
Já sei, já sei: você quer que eu traduza isso. Vamos tomar como exemplo o próprio verbo "chegar". Como verbo que indica "movimento para", rege (originariamente) a preposição "a", o que também ocorre com "ir", "levar", "dirigir-se" etc. (chegar ao cinema, a Paris, à Europa; ir ao colégio, a Itu, à França; levar alguém ao teatro, a Manaus, à Itália).
Nas variedades formais da língua, é essa a regência que de fato predomina, mas, assim como escolhemos a roupa de acordo com a situação, empregamos (ou deveríamos empregar) os verbos de acordo com a variedade lingüística adotada. Você já imaginou Caetano Veloso (ou Daniela Mercury) soltando um "Quando eu chego a casa, nada me consola..."?
Como diz a garotada, "sem chance". Na língua espontânea do Brasil, quem chega chega a. Fora Caetano português, certamente teria escrito "Quando chego a casa, nada me consola", mas isso é outra história. Se ele tivesse de escrever um ensaio ou outro tipo de texto formal, é provável que também optasse por "chegar a", mas, numa música popular, em que muitas vezes se chega perto da oralidade, é mais do que natural o emprego de "chegar em".
Se você estranhou o fato de não haver acento indicador de crase no "a" que vem antes de "casa" em "Quando chego a casa", informo que esse "a" não tem acento mesmo, mas isso também é outra história. Um belo dia tratamos disso. Por enquanto, peço-lhe que pense nestas frases: "Não dormi em casa ontem"; "Não venho do trabalho; venho de casa". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br


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