São Paulo, sábado, 16 de junho de 2001

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LETRAS JURÍDICAS

Fascismo social no país do sociólogo

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

A definição dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil está no artigo 3º de nossa Constituição. São todos de grande nobreza e esperança. Valem como pólos de concentração ideal para o povo, como destinos a serem alcançados pelo Brasil, na permanente viagem de nossos sonhos.
O primeiro desses objetivos consiste em realizar uma sociedade livre, justa e solidária. Para ser livre, a sociedade terá liberdades públicas asseguradas a todos. Cidadania livre é cidadania sem intervenção excessiva do poder. No país das medidas provisórias, o cidadão acorda tolhido, dia após dia, com e sem "apagões" e "caladões". Para que a sociedade possa ser tida por justa, é necessário diminuir as distâncias sociais, com pobres menos pobres. Depois que a moeda se estabilizou, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, honra seja feita, houve melhora nesse campo, mas o Brasil ainda é dos mais atrasados do mundo na satisfação das necessidades sociais do ser humano.
A solidariedade proclamada no texto constitucional deve ser espontânea, colhida na consciência de cada um e, pelo menos, da população mais aquinhoada em favor dos que têm pouco. A solidariedade do artigo 3º da Constituição precisa, porém, ser catalisada pelo Estado para o trabalho espontâneo em favor dos menos favorecidos. O objetivo social exigirá da administração pública e de seus funcionários que atuem em favor dos cidadãos, com eles e não contra eles, como se os considerassem inimigos. O desenvolvimento nacional, segunda das grandes metas do país, tem ido bem no plano econômico. Progredimos em termos materiais, mas não o quanto baste.
O terceiro e o quarto objetivos fundamentais, previstos no artigo 3º, são projetos de um sonho estratosférico. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir desigualdades sociais e regionais é trabalho para séculos. Não há nação do mundo sem faixas de miserabilidade -nem as mais ricas. A promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação carece de remédio forte, como criminalização das condutas contrárias. Sem a ameaça grave de sanções, a cobra raivosa do preconceito continuará agindo no coração de muitas pessoas.
A Carta proíbe a discriminação entre o homem e a mulher (artigo 5º, I, e artigo 226, parágrafo 5º), contra as liberdades fundamentais, e a prática do racismo (artigo 5º, incisos XLI e XLII). No trabalho, veda distinções quanto ao salário, ao exercício de funções e aos critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (artigo 7º, inciso XXX). O sociólogo português Boaventura de Souza Santos, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, falando recentemente a esta Folha, verberou a polarização da riqueza em muitos países, inclusive no nosso, em condições parecidas com a dos Estados fascistas tradicionais. Exemplificou com grupos criminosos que substituem o Estado em certas regiões (vide o PCC) e com a parte corrupta da polícia, colaboradora do crime organizado, não se sabendo onde acaba a administração pública e começa a sociedade.
Boaventura lembra a incapacidade de redistribuição da riqueza, permitindo que o capitalismo opere contra o pobre, e não a favor dele. Chama essa situação de fascismo social. Neste país, presidido por um sociólogo, precisamos meditar sobre as insuficiências gerais e as do direito em particular, afirmadas pelo sábio sociólogo português. Meditar para corrigi-las.


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