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LETRAS JURÍDICAS
Fascismo social no país do sociólogo
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
A definição dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil está no
artigo 3º de nossa Constituição.
São todos de grande nobreza e esperança. Valem como pólos de
concentração ideal para o povo,
como destinos a serem alcançados pelo Brasil, na permanente
viagem de nossos sonhos.
O primeiro desses objetivos consiste em realizar uma sociedade
livre, justa e solidária. Para ser livre, a sociedade terá liberdades
públicas asseguradas a todos. Cidadania livre é cidadania sem intervenção excessiva do poder. No
país das medidas provisórias, o cidadão acorda tolhido, dia após
dia, com e sem "apagões" e "caladões". Para que a sociedade possa
ser tida por justa, é necessário diminuir as distâncias sociais, com
pobres menos pobres. Depois que
a moeda se estabilizou, durante o
governo de Fernando Henrique
Cardoso, honra seja feita, houve
melhora nesse campo, mas o Brasil ainda é dos mais atrasados do
mundo na satisfação das necessidades sociais do ser humano.
A solidariedade proclamada no
texto constitucional deve ser espontânea, colhida na consciência
de cada um e, pelo menos, da população mais aquinhoada em favor dos que têm pouco. A solidariedade do artigo 3º da Constituição precisa, porém, ser catalisada
pelo Estado para o trabalho espontâneo em favor dos menos favorecidos. O objetivo social exigirá da administração pública e de
seus funcionários que atuem em
favor dos cidadãos, com eles e não
contra eles, como se os considerassem inimigos. O desenvolvimento nacional, segunda das
grandes metas do país, tem ido
bem no plano econômico. Progredimos em termos materiais, mas
não o quanto baste.
O terceiro e o quarto objetivos
fundamentais, previstos no artigo
3º, são projetos de um sonho estratosférico. Erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir desigualdades sociais e regionais é
trabalho para séculos. Não há nação do mundo sem faixas de miserabilidade -nem as mais ricas.
A promoção do bem de todos, sem
preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação carece de
remédio forte, como criminalização das condutas contrárias. Sem
a ameaça grave de sanções, a cobra raivosa do preconceito continuará agindo no coração de muitas pessoas.
A Carta proíbe a discriminação
entre o homem e a mulher (artigo
5º, I, e artigo 226, parágrafo 5º),
contra as liberdades fundamentais, e a prática do racismo (artigo 5º, incisos XLI e XLII). No trabalho, veda distinções quanto ao
salário, ao exercício de funções e
aos critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado
civil (artigo 7º, inciso XXX). O sociólogo português Boaventura de
Souza Santos, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, falando recentemente a esta Folha, verberou a
polarização da riqueza em muitos países, inclusive no nosso, em
condições parecidas com a dos Estados fascistas tradicionais.
Exemplificou com grupos criminosos que substituem o Estado em
certas regiões (vide o PCC) e com
a parte corrupta da polícia, colaboradora do crime organizado,
não se sabendo onde acaba a administração pública e começa a
sociedade.
Boaventura lembra a incapacidade de redistribuição da riqueza, permitindo que o capitalismo
opere contra o pobre, e não a favor dele. Chama essa situação de
fascismo social. Neste país, presidido por um sociólogo, precisamos meditar sobre as insuficiências gerais e as do direito em particular, afirmadas pelo sábio sociólogo português. Meditar para
corrigi-las.
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