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LETRAS JURÍDICAS
Fábula da galinha e do veado
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Um dia, o veado e a galinha, antes grandes amigos, tiveram forte discussão, querendo cada um deles sustentar
que, entre os humanos, era o outro o mais desprestigiado. Antes
que a discussão esquentasse de
uma vez, o veado fez até alusão
aos sagrados direitos constitucionais de sua imagem, de sua intimidade e de sua honra. Perdeu
seu precioso tempo.
- Não me venha com esse papo
de lei. Para os animais, a lei não
vale! Você é cego ou surdo-, sustentou a galinha, entre fortes
cocoricós.
Fez até pior. Sem mostrar solidariedade com outros irracionais,
concluiu, raspando o chão com as
pontas aduncas dos pés:
- Acho que você é burro, porque não quer ver a realidade do
seu desprestígio e, além de tudo,
fica enfunando o peito, todo
posudo.
O veado, até aí, ainda mantinha uma certa fleuma, indiferente à agitação da sua opositora,
que, além de se manifestar aos
gritos, fazia um esparramo, levantando pó. Contudo ser chamado pejorativamente de burro
era um pouco muito. Resolveu
reagir na mesma medida:
- Você, sim, é surda. Ou então
não entende nada do que os humanos falam. Ser galinha, para o
homem e para a mulher, é ter
uma vida muito livre se é que você sabe, sendo ignorante, o que isso significa!
- Eta sujeitinho besta!-, gritou a outra, na procura de uma
resposta dura e rápida. Não se
deu, porém, por achada, mesmo
ofendida pela conotação feia,
mas injusta, dada pelos humanos
à sua condição. Replicou furiosa:
- E você, seu idiota, o que é
que sabe? Até na Itália eles falam
dos "viados". Escrevem com "i",
mas nem por isso mostram menos
desprezo. Lembram até a história
de Sodoma e Gomorra!-, concluiu a galinha, esganiçada pela
irritação.
Essa foi a hora em que o veado
embasbacou. Com que então
aquela ave barulhenta e confusa
já tinha lido a Bíblia!? Parou um
instante, em silêncio, antes de
responder:
- Pensando bem, acho que nós
dois estamos bancando os bobos:
fazendo o jogo dos humanos, de
dividir para conquistar, usando
nossas espécies até para ofendermos uns aos outros.
Quase pôs a paz a perder, com
um súbito retorno à sabedoria jurídica, ao exclamar:
- Acho até que deveríamos
exigir o direito de resposta.
A galinha balançou a cabeça
ante a ingenuidade de seu amigo.
Imediatamente, porém, compreendeu que ele tinha razão.
Mudou de tom e ponderou:
- Indo na conversa dos humanos e nos gestos deles, nós nos
mantemos submissos e só servimos para os golpes que aplicam.
Na verdade, devemos saber que
eles nos tratam sem respeito
quando querem realizar seus objetivos e até para promoverem
brincadeiras de mau gosto.
Feita a descoberta, ambos se puseram a rir e se abraçaram felizes.
Moral: para animais inteligentes, nenhum humano merece fé
nem há lei que resolva o
problema.
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