São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

A voz do corpo

 Você ouve o que seu corpo fala? Equilíbrio, 12.out.2000 (anúncio) Ele não saberia dizer exatamente quando isso aconteceu, mas lá pelas tantas começou a ouvir a voz de seu corpo. Ou, melhor dizendo, as vozes: eram várias. Mas tinham um característico comum: sempre reclamavam. "Você está acabando conosco", protestavam os pés quando ele tinha de assistir a alguma cerimônia sem poder sentar. "Você está me castigando com essa comida", gemia o estômago, cada vez que ele comparecia a um jantar da empresa. Ele escutava, apreensivo, tais protestos, rezando para que não fossem audíveis, para que ficassem só entre ele e o corpo, inesperadamente transformado em adversário.
Por algum tempo optou por ignorar as reivindicações. Mas, então, ocorreu o incidente que mudou sua existência. Ele estava numa reunião importante, com dois diretores da companhia em que trabalhava, quando, de repente, ouviu uma voz surda, cavernosa, vinda das profundezas do ventre:
- Quero ir ao banheiro.
Era o intestino, claro. E o pedido tinha fundamento: saíra apressado, sem tempo de fazer as necessidades. Agora vinha a cobrança.
Depois sussurrou:
- Esta reunião é muito importante.
- Você disse alguma coisa?, perguntou um dos diretores, franzindo o cenho. Ele desconversou: não, não dissera nada, resmungara algo para si próprio. O homem, ainda desconfiado, voltou à longa agenda da reunião, mas aí ele ouviu de novo a voz, insistente:
- Vamos ao banheiro, ou faço aqui mesmo, e você vai morrer de vergonha.
Era uma ameaça terrorista, obviamente, mas ele sabia que era para valer. Levantou-se e, pedindo desculpas, disse que tinha de ir ao banheiro:
- O momento não é oportuno, disse o outro diretor, num tom ácido, ominoso, um tom que continha uma clara advertência: se você sair desta sala, seu emprego pode ir para o espaço.
Mas agora ele já não aguentava mais. Saiu correndo, embarafustou pelo banheiro. E ficou lá muito tempo: o intestino, numa espécie de brincadeira perversa, resolvera funcionar lentamente.
Mas foi sua sorte. Porque, enquanto ele estava sentado no vaso, quatro sequestradores entraram na sede da empresa e levaram os dois diretores. Que ainda estão em lugar incerto e não sabido.
Com o que ele resolveu mudar de vida. Pediu demissão do emprego, mora num sítio, onde passa a maior parte do tempo de papo para o ar. Só que o dinheiro economizado está para terminar, e a mulher (de quem está separado) quer saber o que pretende fazer no futuro. Ele não diz nada. Aguarda pela voz do corpo. Que, no entanto, nunca mais se fez ouvir.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


Texto Anterior: Cientistas pesquisam a região amazônica
Próximo Texto: Atmosfera: Região Sul deve ter dia nublado e com chuvas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.