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MOACYR SCLIAR
A voz do corpo
Você ouve o que seu corpo fala?
Equilíbrio, 12.out.2000 (anúncio)
Ele não saberia dizer exatamente quando isso aconteceu, mas lá pelas tantas começou
a ouvir a voz de seu corpo. Ou,
melhor dizendo, as vozes: eram
várias. Mas tinham um característico comum: sempre reclamavam. "Você está acabando conosco", protestavam os pés quando
ele tinha de assistir a alguma cerimônia sem poder sentar. "Você
está me castigando com essa comida", gemia o estômago, cada
vez que ele comparecia a um jantar da empresa. Ele escutava,
apreensivo, tais protestos, rezando para que não fossem audíveis,
para que ficassem só entre ele e o
corpo, inesperadamente transformado em adversário.
Por algum tempo optou por ignorar as reivindicações. Mas, então, ocorreu o incidente que mudou sua existência. Ele estava numa reunião importante, com dois
diretores da companhia em que
trabalhava, quando, de repente,
ouviu uma voz surda, cavernosa,
vinda das profundezas do ventre:
- Quero ir ao banheiro.
Era o intestino, claro. E o pedido tinha fundamento: saíra
apressado, sem tempo de fazer as
necessidades. Agora vinha a cobrança.
Depois sussurrou:
- Esta reunião é muito importante.
- Você disse alguma coisa?, perguntou um dos diretores, franzindo o cenho. Ele desconversou:
não, não dissera nada, resmungara algo para si próprio. O homem, ainda desconfiado, voltou à
longa agenda da reunião, mas aí
ele ouviu de novo a voz, insistente:
- Vamos ao banheiro, ou faço
aqui mesmo, e você vai morrer de
vergonha.
Era uma ameaça terrorista, obviamente, mas ele sabia que era
para valer. Levantou-se e, pedindo desculpas, disse que tinha de ir
ao banheiro:
- O momento não é oportuno,
disse o outro diretor, num tom
ácido, ominoso, um tom que continha uma clara advertência: se
você sair desta sala, seu emprego
pode ir para o espaço.
Mas agora ele já não aguentava
mais. Saiu correndo, embarafustou pelo banheiro. E ficou lá muito tempo: o intestino, numa espécie de brincadeira perversa, resolvera funcionar lentamente.
Mas foi sua sorte. Porque, enquanto ele estava sentado no vaso, quatro sequestradores entraram na sede da empresa e levaram os dois diretores. Que ainda
estão em lugar incerto e não sabido.
Com o que ele resolveu mudar
de vida. Pediu demissão do emprego, mora num sítio, onde passa a maior parte do tempo de papo para o ar. Só que o dinheiro
economizado está para terminar,
e a mulher (de quem está separado) quer saber o que pretende fazer no futuro. Ele não diz nada.
Aguarda pela voz do corpo. Que,
no entanto, nunca mais se fez ouvir.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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