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DANUZA LEÃO
É tudo ao contrário
Foi um namoro, no mínimo, complicado. A família
dele achava que ela etc. etc., a dela que ele, além de todos os etc.
etc., não tinha futuro. Mas o
amor foi mais forte e eles resolveram enfrentar tudo, com coragem
e bravura.
No começo foi difícil: cada um
arranjou seu emprego e, com a
ajuda providencial -e discreta- de um tio que sempre se arrependeu de não ter tido a coragem de fazer o mesmo que eles, foram morar num apartamentinho
que era um ovo de codorna. Como o casamento foi meio clandestino, quase não ganharam presentes, mas em compensação herdaram várias coisas para começar a vida.
Uma TV usada mas funcionando, um jogo de quatro facas, quatro garfos etc. -também, não
iam dar jantares-, de uma amiga uma louça que estava no fundo do armário -novinha- e assim foram se instalando. À noite o
sofá virava cama, e tudo bem;
com muito amor tudo está sempre ó-ti-mo. Às vezes comiam pizza, outras vezes um sanduíche
quebrava o galho, e restaurante
mesmo -uma churrascaria ali
por perto- só uma vez por mês.
Ele foi progredindo por um lado, ela também; menos, mas também. Eram jovens, alegres e felizes
e como encaravam qualquer trabalho extra que pintasse, conquistaram a simpatia dos colegas e
formou-se até um tipo de corrente
para ajudar o casal a melhorar de
vida.
Ele era esperto, inteligente e trabalhador; foi subindo devagarzinho e quando, três ou quatro
anos depois, ela ficou grávida,
deu para alugar um dois-quartos-e-sala -um sucesso; quando
nasceu a primeira filha, a reconciliação com a família foi total.
A vida foi passando, uma oportunidade surgiu e um dia ele se
estabeleceu por conta própria;
nada de muito excepcional, mas
ele passou a ser seu próprio patrão e ela não precisou mais trabalhar; veio o segundo filho, o terceiro, ele expandiu seu negócio,
compraram um carro do ano, os
filhos foram matriculados em colégios particulares e já levavam
uma vida confortável.
Quando a mais velha estava
com 14 anos, ela -a mãe- cismou de voltar a estudar; ele não
gostou. "Mas que idéia é essa? Pra
que, me explica, pra quê?" Ela bateu o pé; queria porque queria.
Como tinha uma empregada e as
crianças estavam crescidas, resolveu fazer vestibular. Pra quê? Não
sabia, mas queria. E quando mulher cisma, já viu.
Para poder dar atenção aos filhos, estudava à noite; nos primeiros tempos, voltava da aula
correndo, toda feliz. No terceiro
mês, fez um corte de cabelo moderninho e às vezes, depois do
curso, ia tomar um chope com as
colegas. Mas, como o curso não
era propriamente num convento,
havia as colegas e os colegas; às
vezes acontecia de chegar tarde e
o marido -o maridão, como já
era chamado- estar dormindo.
E um dia, quando viu, tinha se
enrolado.
Ele descobriu, claro, e foi duro;
ela tentou negar, mas aos 20 minutos do primeiro tempo acabou
admitindo; resolveram se separar
e ele, como um pai moderno, ficou com os filhos, o que ela, aliás,
a-do-rou. Na primeira noite que
passou no novo apartamento
-outro ovo de codorna-, levou
seis latas de cerveja e um pacote
de cigarros para festejar a liberdade. Sozinha, para poder pensar. Acendeu o primeiro e começou a lembrar: quando é que começou a não dar certo? Lembrou
das dificuldades que enfrentaram, dos sonhos que sonharam
juntos e começou a desconfiar de
que é mais fácil viver com alguém
quando se luta por alguma coisa
-seja por uma vida melhor seja
por uma causa política, não importa. Quando tudo está em paz,
é que são elas.
Lúcida, abriu o segundo maço
de cigarros -a partir dessa noite
ia poder fumar quanto quisesse- e a terceira lata de cerveja e
concluiu que, para a vida a dois
ter sentido, é preciso que haja
sempre um ideal, pelo menos um
desafio, e esperar que as crianças
cresçam não é o suficiente -não
para ela.
E não pôde evitar o pensamento: a vida é bem curiosa.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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