São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2001

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DANUZA LEÃO

É tudo ao contrário

Foi um namoro, no mínimo, complicado. A família dele achava que ela etc. etc., a dela que ele, além de todos os etc. etc., não tinha futuro. Mas o amor foi mais forte e eles resolveram enfrentar tudo, com coragem e bravura.
No começo foi difícil: cada um arranjou seu emprego e, com a ajuda providencial -e discreta- de um tio que sempre se arrependeu de não ter tido a coragem de fazer o mesmo que eles, foram morar num apartamentinho que era um ovo de codorna. Como o casamento foi meio clandestino, quase não ganharam presentes, mas em compensação herdaram várias coisas para começar a vida.
Uma TV usada mas funcionando, um jogo de quatro facas, quatro garfos etc. -também, não iam dar jantares-, de uma amiga uma louça que estava no fundo do armário -novinha- e assim foram se instalando. À noite o sofá virava cama, e tudo bem; com muito amor tudo está sempre ó-ti-mo. Às vezes comiam pizza, outras vezes um sanduíche quebrava o galho, e restaurante mesmo -uma churrascaria ali por perto- só uma vez por mês.
Ele foi progredindo por um lado, ela também; menos, mas também. Eram jovens, alegres e felizes e como encaravam qualquer trabalho extra que pintasse, conquistaram a simpatia dos colegas e formou-se até um tipo de corrente para ajudar o casal a melhorar de vida.
Ele era esperto, inteligente e trabalhador; foi subindo devagarzinho e quando, três ou quatro anos depois, ela ficou grávida, deu para alugar um dois-quartos-e-sala -um sucesso; quando nasceu a primeira filha, a reconciliação com a família foi total.
A vida foi passando, uma oportunidade surgiu e um dia ele se estabeleceu por conta própria; nada de muito excepcional, mas ele passou a ser seu próprio patrão e ela não precisou mais trabalhar; veio o segundo filho, o terceiro, ele expandiu seu negócio, compraram um carro do ano, os filhos foram matriculados em colégios particulares e já levavam uma vida confortável.
Quando a mais velha estava com 14 anos, ela -a mãe- cismou de voltar a estudar; ele não gostou. "Mas que idéia é essa? Pra que, me explica, pra quê?" Ela bateu o pé; queria porque queria. Como tinha uma empregada e as crianças estavam crescidas, resolveu fazer vestibular. Pra quê? Não sabia, mas queria. E quando mulher cisma, já viu.
Para poder dar atenção aos filhos, estudava à noite; nos primeiros tempos, voltava da aula correndo, toda feliz. No terceiro mês, fez um corte de cabelo moderninho e às vezes, depois do curso, ia tomar um chope com as colegas. Mas, como o curso não era propriamente num convento, havia as colegas e os colegas; às vezes acontecia de chegar tarde e o marido -o maridão, como já era chamado- estar dormindo. E um dia, quando viu, tinha se enrolado.
Ele descobriu, claro, e foi duro; ela tentou negar, mas aos 20 minutos do primeiro tempo acabou admitindo; resolveram se separar e ele, como um pai moderno, ficou com os filhos, o que ela, aliás, a-do-rou. Na primeira noite que passou no novo apartamento -outro ovo de codorna-, levou seis latas de cerveja e um pacote de cigarros para festejar a liberdade. Sozinha, para poder pensar. Acendeu o primeiro e começou a lembrar: quando é que começou a não dar certo? Lembrou das dificuldades que enfrentaram, dos sonhos que sonharam juntos e começou a desconfiar de que é mais fácil viver com alguém quando se luta por alguma coisa -seja por uma vida melhor seja por uma causa política, não importa. Quando tudo está em paz, é que são elas.
Lúcida, abriu o segundo maço de cigarros -a partir dessa noite ia poder fumar quanto quisesse- e a terceira lata de cerveja e concluiu que, para a vida a dois ter sentido, é preciso que haja sempre um ideal, pelo menos um desafio, e esperar que as crianças cresçam não é o suficiente -não para ela.
E não pôde evitar o pensamento: a vida é bem curiosa.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br



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