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PASQUALE CIPRO NETO
Acento indicador de crase pra quê?
"A solidão curará nossa aversão à multidão, a multidão, nosso tédio à solidão." Quem é
quem nessa história?
TALVEZ O LEITOR não saiba ou
não se lembre, mas há dois ou
três anos um dos nossos parlamentares tentou fazer ir adiante
um projeto de lei que eliminaria o
acento grave, aquele que indica a
ocorrência de crase. Comentei o caso neste espaço há algum tempo. O
argumento do tribuno para essa mágica proposta? Ninguém consegue
aprender (nem ensinar) o uso do
bendito acento, de modo que...
Antes do parlamentar, um dos
nossos mais brilhantes lingüistas, já
falecido, embarcara nessa canoa, cujo casco talvez não agüentasse nem
mares ligeiramente revoltos, que dirá procelas. Em sua proposta de extinção do acento grave, o nobilíssimo (sem ironia!) professor sugeria
que ele se tornasse facultativo nos
casos em que fosse necessário evitar
ambigüidade. Já imaginou a salada?
Pois bem. Levando tudo isso em
conta, peço-lhe que leia com cuidado este trecho de "Sobre a Tranqüilidade da Alma" (do filósofo Sêneca
-tradução de J. R. Seabra Filho), incluído na última prova da Fuvest: "A
solidão curará nossa aversão à multidão, a multidão, nosso tédio à solidão". O caro leitor entendeu a frase?
Entendeu quem é quem na história?
Por uma questão de clareza, eu teria escrito a passagem com um ponto-e-vírgula depois de "à multidão"
("A solidão curará nossa aversão à
multidão; a multidão, nosso tédio à
solidão"), mas no excerto publicado
na prova havia vírgula mesmo.
Por falar em vírgula, a que aparece
entre "a multidão" e "nosso tédio" é
chamada de "vicária", já que faz as
vezes do verbo ("curará", implícito).
"Vicário" significa "que substitui outra coisa ou pessoa" ("Houaiss").
No trecho destacado pela banca,
há duas orações. A primeira é "A solidão curará nossa aversão à multidão" (o sujeito é "a solidão"). A segunda é "a multidão, nosso tédio à
solidão". Como já vimos, o verbo da
segunda oração é "curará"; o sujeito
é "a multidão". Sem termos implícitos, teríamos isto: "A solidão curará
nossa aversão à multidão; a multidão curará nosso tédio à solidão".
Se você estranhou a construção
"tédio à solidão" (em que se emprega a regência "tédio a algo"), saiba
que ela não é rara nos registros clássicos da língua ("Machado de Assis e
o tédio à controvérsia" é o nome de
um importante ensaio escrito por
Mário Casassanta, em 1934).
E então? O caro leitor já imaginou
a tradução do excerto de Sêneca sem
os acentos indicadores de crase? Se
com esses acentos já é um tanto difícil captar de imediato o teor da mensagem, imagine sem eles...
Mas voltemos à questão da Fuvest. A banca pediu o seguinte: "Sem
prejuízo para o sentido original,
reescreva o trecho, iniciando-o com
Nossa aversão à multidão...". O trecho já está um tanto distante, por
isso sugiro-lhe que o releia. Releu?
Como a solução do problema exige
a passagem da voz ativa para a passiva, pode-se ter a impressão de
que basta o domínio das vozes verbais, mas, sem entender a estrutura da frase original, nada feito.
A resposta poderia ser esta:
"Nossa aversão à multidão será curada pela solidão; nosso tédio à solidão, pela multidão". Mais uma
vez, há uma vírgula substituindo
uma forma verbal (no caso, uma locução -"será curada"). Essa vírgula (vicária) é a que ocorre entre
"solidão" e "pela multidão". É isso.
inculta@uol.com.br
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