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Igor, 27, relata suas viagens pelas raves
Freqüentador assíduo de academias de musculação, ele começou usando anabolizantes injetáveis para moldar o corpo
Jovem esportista da classe média, que entrou no mundo do ecstasy após desilusão amorosa, conta suas memórias
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Era uma manhã de segunda-feira, no ano passado, quando
Igor Nunes Marin se observou
detidamente diante do espelho
do banheiro de seu quarto, como se procurasse alguém desaparecido. Tinha perdido cerca
de 20 quilos, os músculos dos
braços pareciam murchos, as
olheiras destacavam-se no rosto abatido. "Será que vou algum
dia voltar?", pensou, ainda se
encarando, desolado, no espelho. O que via, naquela manhã,
pouco lembrava o esportista
aficionado por musculação e
basquete.
O contraste entre a imagem
do espelho e a da memória ficava mais forte quando ele se
lembrava de que, até pouco
tempo atrás, tinha namorada e
emprego. Estava só e desempregado, dependendo do dinheiro dos pais. Até mesmo seu
desejo sexual ele sentia que vinha, pouco a pouco, diminuindo e justamente por causa do
excesso do consumo de ecstasy,
a droga vendida como a pílula
do prazer.
Naquele momento, seu corpo tinha se transformado numa
espécie de laboratório de experimentos químicos. Por determinação de sua psiquiatra, ele
tomava uma série de fortes antidepressivos para tentar se livrar da dependência das drogas, o que lhe deixava com a
sensação de estar anestesiado.
Mas, nas raves que freqüentava, misturava-os com abundantes doses de uísque, várias
"balas" (como são conhecidas
as pílulas de ecstasy) e até
"doces" (LSD).
Num sítio do
interior de São
Paulo, numa
dessas festas,
que se prolongou por mais de
24 horas, ele
notou que estava perdendo o
controle. Berrou pedindo socorro aos amigos. "Bateu um
desespero", recorda-se. Ninguém ouvia
seus apelos, a
música eletrônica dominava
os sons do salão. Estatelou-se no chão.
Lembra-se
apenas da alucinação de que tinha, dentro da
cabeça, um videogame que não
sabia desligar.
Não se lembra de como acordou de manhã cedo sozinho numa praça em Osasco, com a
roupa toda suja.
Na semana passada, Igor, 27,
começou a organizar e escrever
suas memórias para tentar entender como, no ano passado,
se entregou ao consumo desenfreado de drogas sintéticas nas
raves. "Viver resumiu-se à espera das festas." Há quatro meses, está limpo, submetido aos
antidepressivos e à terapia.
Jovem da classe média paulista, Igor sempre estudou em
escolas privadas e formou-se
em marketing. Sentia-se um rapaz de família, com o projeto de
ter uma casa cheia de filhos. Espírita, rezava todos os dias.
Freqüentador assíduo de
academias de musculação, não
se imaginava fazendo nada de
errado ao abusar dos anabolizantes para moldar seu corpo.
Usava obsessivamente anabolizantes injetáveis ou em comprimidos, sem se incomodar
com os efeitos colaterais, como
a irritabilidade. "Vejo agora que
aquela vontade de ter o corpo
perfeito estava escondendo
uma fragilidade."
Trocou os coquetéis contínuos de anabolizantes que deixaram seu corpo de 1,80 m com
110 quilos pelas drogas sintéticas, ao entrar na trilha das raves pelo interior e pelo litoral
de São Paulo.
Entrou nessa trilha por causa
do tédio provocado por uma recente desilusão amorosa. Nem
gostava de música eletrônica.
Na sua primeira rave, levou um
Ipod para ouvir seus pagodes.
Até então, só usara maconha.
Deram-lhe meia pílula de
ecstasy. "Não senti nada." Tomou mais. A partir daí, não seria mais o mesmo.
No dia seguinte, ao acordar
em casa, percebeu-se mais triste do que nunca, pensando na
desilusão amorosa. "A tristeza
não passava." Ficou pior durante a semana. "Não quis sair
de casa, queria ficar trancado
no quarto, com as cortinas fechadas, sem luz." Animou-se,
porém, a ir a mais uma rave, onde logo tomou um ecstasy com
bebida alcoólica. "Experimentei uma felicidade enorme, era
como se eu fosse uma fortaleza,
a pessoa mais interessante da
festa." Encantava-o a paisagem
humana de tanta gente jovem e
bonita. "Por todos os lados, era
cercado de mulheres lindas."
Fortaleza significava também ser mais forte do que qualquer vício. "Eu olhava aquele
pedacinho de pílula que entrava no meu corpo de 110 quilos e
pensava que aquilo, uma coisa
tão pequena, não me dominaria." Experimentou até um pó
veterinário usado em cavalos.
À tristeza aguda mesclaram-se episódios de pânico que reforçavam sua vontade de ficar
trancado em casa. Perdera seu
emprego e, ainda por cima, ouvira a seguinte frase da ex-namorada, impressionada com o
efeito das drogas: "Não sei mais
quem é você". Para completar,
sua culpa não parava de crescer, ao ver o sofrimento dos
pais. "Eu via meus pais chorando e chorava também."
As dores se desfaziam nas
festas, mas sempre à custa de
doses cada vez maiores de drogas, adquiridas facilmente por
jovens, como ele, de classe média. "A verdade é
que eles não se
imaginam como
traficantes. Certamente, eles se
sentiriam ofendidos se fossem chamados de traficantes. Traficante, para eles, é
aquele sujeito violento que vive no
morro."
Aos poucos,
Igor já não se espantava com algumas cenas das festas, como a de um
rapaz nadando na
grama como se estivesse no mar, a
de outro que tentava voar dizendo-se Superman ou a
de jovens adormecidos no lixo.
A euforia passou a misturar-se, também nas raves, ao pânico. "Numa noite, eu estava próximo da piscina. Vi suas águas
subirem para me agarrar. Saí
correndo. Pedi socorro. Olhava
para as pessoas e todas tinham
a cara de monstro."
Sabia que estava na hora de
parar, mas não sabia como. Faltava-lhe força. Seu melhor amigo tentava, em vão, demovê-lo
de ir às festas. Em casa, não
dormia de noite. Às vezes, ia para a academia e chegava a andar
por três horas na esteira. Recebeu, então, um ultimato da família: se não aceitasse o tratamento médico e a terapia, seria
internado na marra.
Foi quando passou a ingerir
os antidepressivos com LSD,
ecstasy e bebida alcoólica. "Na
minha memória, parecia que
meu corpo não sentia dor."
Com esse estado de espírito,
naquela manhã de segunda-feira, olhou-se ao espelho à procura de sua própria imagem.
Depois de alguns meses, a
combinação dos remédios com
a terapia ajudou-o a evitar as
drogas. Assim como o ajudou
ter reatado com a namorada.
Ao escrever suas memórias, cujo título provisório é "Voltei",
imagina que saberá entender
melhor tudo o que aconteceu
-e, mais importante, nessa reconstrução, quem sabe venha a
se sentir útil, transformando
sua trajetória em aprendizado
para mais gente.
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