São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 2011

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PASQUALE CIPRO NETO

"Você e tu / Lhe amo"


A descrição da mecânica do uso dos pronomes no padrão formal não estabelece nenhum juízo de valor


NA MAIS DO QUE ANTOLÓGICA letra de "Língua" (do disco "Velô", de 1984), mestre Caetano Veloso traça um riquíssimo panorama antropológico-histórico-social do nosso idioma. Neste espaço, já citei diversas vezes trechos dessa canção, mas talvez ainda falte uma análise ampla de toda a letra. Um belo dia, encho o peito e vou (por que não?!).
Pois bem. Na segunda metade da canção, encontram-se os versos que estão no título desta coluna, com os quais Caetano faz referência ao uso brasileiro dos pronomes "lhe", "tu" e "você". Como se sabe, no Brasil o uso de "tu" e "você" obedece mais a particularidades regionais do que a outros aspectos. Em determinadas regiões, vê-se o emprego de "tu", ora com o verbo na segunda pessoa tradicional ("Queres água?", como me perguntou uma vez alguém em Belém), ora com o verbo na terceira pessoa ("Tu foi lá?", como é comum no Rio de Janeiro, em Santos e em tantas outras cidades brasileiras).
Em outras regiões do Brasil, o pronome que predomina nas relações informais é "você". Em Portugal, o pronome empregado nessas situações é basicamente "tu" (muitas vezes implícito), com o verbo na segunda pessoa ("Foste lá?").
É bom lembrar que, no padrão formal da língua, ainda é desejável a uniformidade de tratamento, ou seja, pronomes e verbos em sintonia (ou tudo na segunda pessoa ou tudo na terceira). O vestibular da Fuvest (USP) é um dos que exigem o domínio da uniformidade de tratamento.
E o pronome "lhe"? Novamente, no Brasil a questão obedece mais a particularidades regionais do que a outros aspectos. Em muitas regiões, o pronome "lhe" é empregado independentemente da regência do verbo ("Faz muito tempo que não lhe vejo"; "Eu lhe adoro"; "Eu não lhe disse que isso ia acontecer?").
Convém lembrar que, no padrão formal da língua, o pronome "lhe" complementa verbo que rege preposição (sobretudo as preposições "a" e "para"). Assim, apenas o último dos três exemplos citados no fim do parágrafo anterior segue o padrão culto. Em "Eu não lhe disse que...", o pronome "lhe" funciona como objeto indireto de "dizer" (dizer algo a alguém). Nos outros dois exemplos, os verbos ("ver" e "adorar") não regem preposição, o que significa que, no padrão formal da língua, o pronome que os complementaria seria "o" ("a"), e não "lhe": "Faz tempo que não o/a vejo"; "Eu o/a adoro".
Antes que um membro de uma das tantas seitas que confundem explicação dos usos com pregação/imposição de um determinado uso se ponha a lançar pedras, explico que a descrição da mecânica do emprego do pronome "lhe" no padrão culto da língua não estabelece nenhum juízo de valor sobre isto ou aquilo. Nenhum falante de regiões em que se diz "Eu lhe adoro" vai deixar de dizer "Eu lhe adoro" e passar a dizer "Eu o/a adoro" só porque no padrão formal a coisa é diferente.
Esse emprego do pronome "lhe" como complemento verbal direto, típico de alguns dialetos (sociais e/ ou regionais) do português do Brasil, constitui um fenômeno linguístico chamado "lheísmo", estudado (como tantos outros fenômenos) pela sociolinguística, "ramo da linguística que estuda as relações entre língua e sociedade e dá ênfase ao caráter institucional das línguas", na definição do "Houaiss".
Na imprensa brasileira, tem ocorrido um fenômeno inverso ao "lheísmo", ou seja, tem ocorrido o emprego do pronome oblíquo "o" ("a") no lugar do "lhe". Esse caso, que já entrou em questões de vestibulares importantes (o da Unifesp-2011, por exemplo), certamente justifica uma coluna a respeito do tema. É isso.

inculta@uol.com.br


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