São Paulo, terça, 17 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ladrões, ladrões por todas as partes

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Dois talões de cheques por R$ 9,00. Se é isso o que a moeda vale, os dois bloquinhos de folhas de papel, então a moeda não vale nada, é uma mentira.
Noventa e oito centavos por um extrato bancário retirado nesses caixas automáticos -um pedacinho de papel que não mede mais do que 7,5 cm por 15 cm. Assalto. Roubo a mão armada -os bandidos, os bancos, com direito a meia na cara e metralhadora em punho. Os bancos, os bandidos, usam máscaras, meias na cara, máquinas disfarçadas de mulheres-terminais, fatais, automáticas, magnéticas: boa tarde! Enfie o seu cartão no...
Como é que pode um banco cobrar R$ 0,98 por um ridículo pedacinho de papel ralo, impresso com tinta fraca, e ficar tudo por isso mesmo? Como é que pode, se a passagem de ônibus custa R$ 1,00, se uma folha inteira de papel sulfite tamanho ofício não custa nem R$ 0,10? Tudo errado. Que custos são esses? Que sacanagem?
Os impostos, as tarifas, os compulsórios todos (fora os que pagamos e nem sabemos, embutidos nisso e naquilo), a roubalheira oficializada.
São pequenos assaltos, fraudes, furtos diários, recorrentes, insistentes. São pequenos roubos que, somados, porém, equivalem ao conteúdo espetacular de um cofre-forte rasgado a maçarico na calada da noite -o rombo fica na cabeça da pessoa, o soco na boca do estômago, a impotência do buraco que vai se abrindo na dignidade, na vontade, na auto-estima. Ladrões por todo canto.
As prestações do apartamento sobem todo mês um pouco, assim sorrateiramente, como que para o indivíduo não perceber o tamanho do furto mensal, anual, o acréscimo monstruoso e impagável no saldo devedor. Para cada despesa extra, o condomínio vem com justificativas de "pesquisa no mercado pelo preço mais baixo". Um roubo comunitário.
A conta de luz às vezes dá um salto súbito, o valor quase dobra de um mês para o outro. O indivíduo olha enojado para o papelote cheio de números, pensa em qual dos aparelhos elétricos estaria o estrago. Não encontra motivos e se recolhe, sem ânimo para reclamar.
O salário que não aumenta mais (ou aumenta 3% ao ano!) é a mais deslavada das mentiras da "estabilidade". Agem como se não tivessem calculado quanto aumentou o feijão, a roupa, o dentista, o remédio, o convênio médico, o conserto da geladeira, a gasolina, a passagem do ônibus. Estado ladrão, empresa ladrona.
"Fdps! fdps! fdps!", um mendigo gritou para ninguém e para todos no meio da rua outro dia, a poucos passos de mim. Quer cena melhor? Quer melhor desabafo? Dava inveja (e dava medo aquela imundície última, aquela miséria derradeira e definitiva). Ladrões.
A pessoa vai vendo crescer a sensação de que só se mete em roubadas, só entra em frias e dá valor e respeito ao que (e a quem) não merece senão a desclassificação total, a indiferença pura e simples. Ladrões, ladrões por todas as partes.
Fora o que a economia (e a "sociedade") rouba de nós aos montes todo dia, mas não é metal, é coisa nada vã, nada vil -nós mesmos. Ladrões.

E-mai mfelinto@uol.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.