São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

Mais uma (pequena e bela) lição de Pessoa

Nos dois casos, a troca do modo verbal implica apenas a mudança do plano em que se põem os processos?

MOTIVADO PELA COLUNA da semana passada, em que mencionei o trecho "Não sei mais o que faça com esse amor..." (da canção "Não Tem Solução", de Dorival Caymmi e Carlos Guinle), o letrista Carlos Rennó (que, entre outras maravilhas, lavrou a antológica "Ecos do Ão", que um dia analisei neste espaço) me escreveu curta e bela mensagem, em que citou estes versos de Fernando Pessoa: "Não sei o que faça / Não sei o que penso / O frio não passa / E o tédio é imenso".
Rennó destacou o estro de Pessoa, que, ao empregar um verbo no subjuntivo ("faça") e outro no indicativo ("penso"), conseguiu concomitantemente colocar em planos diferentes (hipótese e realidade, respectivamente) os processos expressos por essas formas verbais e cruzar a rima ("faça"/"passa", "penso"/"imenso").
O fato é que a pertinente mensagem de Rennó e o belo exemplo pessoano reforçaram o caráter que imprimi (e sempre tento imprimir) na análise dos fatos da língua -o emprego dos modos verbais, no caso. Não se trata de discutir sobre o certo e/ou o errado, mas de analisar o que muda com esta ou aquela escolha.
Pois não é que, no sábado, um título jornalístico aumentou a lista de casos interessantes? Lá vai ele: "Lula já admite que taxa de juros volte a subir". Vamos direto ao ponto: troque "volte" por "volta" e veja o que ocorre. Já trocou? E então? As duas são possíveis? Tanto faz? Ou será que a melhor resposta é "depende"?
Esse caso é bem parecido com este, que a Unicamp abordou em um de seus últimos vestibulares: "Lula sugere que Walfrido e Agnelo ficam". O que ocorre com a troca de "ficam" por "fiquem"? Será que, nos dois casos, a troca do modo verbal implica tão-somente a mudança do plano em que se põem os processos expressos pelas formas verbais?
Comecemos por relembrar o que ocorre no segundo caso. Com "ficam" ("Lula sugere que Walfrido e Agnelo ficam"), o verbo "sugerir" significa "dar indícios", "fornecer sinais ou pistas". Em outras palavras, afirma-se que determinado pronunciamento de Lula forneceu indícios de que Walfrido e Agnelo ficariam (no ministério). Como Lula era (e ainda é) o responsável pela formação de sua equipe, depreendeu-se de sua fala que ele já se decidira pela permanência de Walfrido e Agnelo.
Com "fiquem" ("Lula sugere que Walfrido e Agnelo fiquem"), o verbo "sugerir" passa a significar "propor".
E no caso do outro título ("Lula já admite que taxa de juros volte a subir")? Com "volte", temos algumas opções interessantes. A primeira delas é entender "admitir" como sinônimo de "permitir", "tolerar".
Outra opção é entender "admitir" como "conceber a hipótese". Em outras palavras, pode-se entender que o presidente já "liberou" o Banco Central (para aumentar os juros) ou que para Lula um possível aumento da taxa de juros é hipótese já digerida.
Com "volta" ("Lula já admite que taxa de juros volta a subir"), "admitir" significa "reconhecer algo evidente, que vai acontecer". Em outras palavras, Lula já não age como diretores de futebol que insistem em negar a saída mais que iminente do treinador e que, após a queda "do professor", dizem que não podiam mesmo ter agido de outro modo.
É por essas e outras que casos como esses merecem análise meticulosa, o que impõe tomar cuidado com a primeira impressão. É isso.


inculta@uol.com.br

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