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São Paulo recolheu-se como um caramujo
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
É guerra. Foi mesmo?
Foi, no mínimo, uma madrugada instrutiva. De segunda para
terça houve menos tiro, fogo e
calor; as ruas eram as mais desertas que São Paulo viu em dezenas
de anos. Mas havia uma tensão
no ar que podia ser cortada com
faca, para os raros que circulavam pela cidade, em geral a trabalho -policiais, alguns bandidos, jornalistas. Tenham ou não,
como se afirmou, lido livros clássicos sobre a guerra, Marcola,
PCC e companhia mostraram o
que aprenderam.
Se de fato o líder criminoso foi
influenciado por "A Arte da
Guerra", do general e autor chinês Sun Tzu, livro escrito em torno do ano 400 a.C., não resta dúvida de que foi bom leitor.
O chinês era um estrategista
sutil. Não defendia o uso direto e
brutal da força. Mais do que destruir, ele queria paralisar o inimigo e vencer sem perda. Para isso,
o ideal é usar estratagemas, manobras, diplomacia e força bruta
apenas seletivamente.
O crime dito organizado também foi influenciado pelo contato com terroristas de esquerda
nos anos 1970, que ensinou aos
bandidos ditos "comuns" como
se organizar e agir. Não por nada,
um dos teóricos mundialmente
famosos da guerrilha urbana foi
o terrorista brasileiro Carlos Marighella (1911-1969).
Atacar as forças de segurança
tornou-se uma estratégia clássica
de grupos de guerrilha, desde cipriotas gregos contra britânicos
em Chipre, a judeus contra britânicos na Palestina antes da criação de Israel. Os insurgentes no
Iraque hoje têm na nova polícia o
seu alvo mais regular.
O efeito é paralisante, ao gosto
de Sun Tzu. Um exemplo dramático foi o ocorrido em um conjunto habitacional residido quase que totalmente por policiais
na zona norte.
Alguns tiros foram disparados
contra os prédios em torno de
20h30 de segunda-feira. Foram
respondidos na hora pelos policiais que moram ali e faz dias têm
um turno extra de trabalho: tomar conta de onde moram com
suas famílias.
Os tiros eram para intimidar.
Provavelmente eram de pistolas
automáticas, mas que saem com
som e fúria de rajadas, dando a
impressão de que o local foi "metralhado". Só as paredes sabem
ainda quais calibres foram usados no breve tiroteio.
"Estamos com apetite", repetiam os policiais em ronda de
suas casas às 3h da madrugada.
Explicação: famintos de revide.
Contra quem, onde? Não sabem,
o que aumenta a sensação de impotência. Sonolentos, mas com
"a adrenalina a mil", paravam
tensos os raros carros para checar. Um velho Opala de um deles
bloqueava a outra saída da rua.
Eles tinham e têm motivos para
ter receio. Já os outros 17 milhões
da Grande São Paulo foram na
onda. Ninguém quer virar estatística.
Paradoxo: no bem mais violento Haiti, com bem menos iluminação nas ruas, as pessoas ficam
mesmo de noite em frente das casas, com fogos precários, enquanto passam as tropas da
ONU em patrulha. Em São Paulo, a população recolheu-se como um caramujo. Só havia as patrulhas.
Um dos mais brilhantes teóricos atuais da guerra, o israelense
Martin van Creveld, da Universidade Hebraica de Jerusalém, afirma que cada vez mais ficam cinzentas as fronteiras entre grupos
guerrilheiros, terroristas e crime
organizado.
Mas em São Paulo não houve
guerra "civil", pois esse tipo de
conflito exige um grupo de uma
sociedade determinado a tomar
o poder de outro. Também não
era guerra "urbana", entendida
como o conflito armado em cidades, com um lado querendo tomar o território do outro.
Os conflitos paulistanos de
maio podem entrar na classificação geral de "guerra irregular
complexa", a mais nova definição
em moda para esse tipo de violência, usada por exemplo pelo IISS
de Londres (sigla em inglês para
Instituto Internacional de Estudos Estratégicos).
Já a guerra "psicológica" foi de
fato perdida. O "terrorismo" em
geral associado ao Oriente Médio
tomou conta da cidade. Não havia
nem prostitutas nas ruas. Duas
raras estavam em um raríssimo
restaurante aberto, o Sujinho, nome de três casas na rua da Consolação conhecidas no passado pelo
impublicável "Bar das P...".
"Fomos de táxi até o programa,
muitas estão com medo, nem saíram de casa. Eu até achava que era
trote, coisa de terrorista", disse
Luana, 20, loira falsa, acompanhada pela colega Michelle, 22,
morena, cujos seios fartos em boa
parte expostos pareciam negar o
frio da madrugada.
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