São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 2006

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São Paulo recolheu-se como um caramujo

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

É guerra. Foi mesmo?
Foi, no mínimo, uma madrugada instrutiva. De segunda para terça houve menos tiro, fogo e calor; as ruas eram as mais desertas que São Paulo viu em dezenas de anos. Mas havia uma tensão no ar que podia ser cortada com faca, para os raros que circulavam pela cidade, em geral a trabalho -policiais, alguns bandidos, jornalistas. Tenham ou não, como se afirmou, lido livros clássicos sobre a guerra, Marcola, PCC e companhia mostraram o que aprenderam.
Se de fato o líder criminoso foi influenciado por "A Arte da Guerra", do general e autor chinês Sun Tzu, livro escrito em torno do ano 400 a.C., não resta dúvida de que foi bom leitor.
O chinês era um estrategista sutil. Não defendia o uso direto e brutal da força. Mais do que destruir, ele queria paralisar o inimigo e vencer sem perda. Para isso, o ideal é usar estratagemas, manobras, diplomacia e força bruta apenas seletivamente.
O crime dito organizado também foi influenciado pelo contato com terroristas de esquerda nos anos 1970, que ensinou aos bandidos ditos "comuns" como se organizar e agir. Não por nada, um dos teóricos mundialmente famosos da guerrilha urbana foi o terrorista brasileiro Carlos Marighella (1911-1969).
Atacar as forças de segurança tornou-se uma estratégia clássica de grupos de guerrilha, desde cipriotas gregos contra britânicos em Chipre, a judeus contra britânicos na Palestina antes da criação de Israel. Os insurgentes no Iraque hoje têm na nova polícia o seu alvo mais regular.
O efeito é paralisante, ao gosto de Sun Tzu. Um exemplo dramático foi o ocorrido em um conjunto habitacional residido quase que totalmente por policiais na zona norte.
Alguns tiros foram disparados contra os prédios em torno de 20h30 de segunda-feira. Foram respondidos na hora pelos policiais que moram ali e faz dias têm um turno extra de trabalho: tomar conta de onde moram com suas famílias.
Os tiros eram para intimidar. Provavelmente eram de pistolas automáticas, mas que saem com som e fúria de rajadas, dando a impressão de que o local foi "metralhado". Só as paredes sabem ainda quais calibres foram usados no breve tiroteio.
"Estamos com apetite", repetiam os policiais em ronda de suas casas às 3h da madrugada. Explicação: famintos de revide. Contra quem, onde? Não sabem, o que aumenta a sensação de impotência. Sonolentos, mas com "a adrenalina a mil", paravam tensos os raros carros para checar. Um velho Opala de um deles bloqueava a outra saída da rua.
Eles tinham e têm motivos para ter receio. Já os outros 17 milhões da Grande São Paulo foram na onda. Ninguém quer virar estatística.
Paradoxo: no bem mais violento Haiti, com bem menos iluminação nas ruas, as pessoas ficam mesmo de noite em frente das casas, com fogos precários, enquanto passam as tropas da ONU em patrulha. Em São Paulo, a população recolheu-se como um caramujo. Só havia as patrulhas.
Um dos mais brilhantes teóricos atuais da guerra, o israelense Martin van Creveld, da Universidade Hebraica de Jerusalém, afirma que cada vez mais ficam cinzentas as fronteiras entre grupos guerrilheiros, terroristas e crime organizado.
Mas em São Paulo não houve guerra "civil", pois esse tipo de conflito exige um grupo de uma sociedade determinado a tomar o poder de outro. Também não era guerra "urbana", entendida como o conflito armado em cidades, com um lado querendo tomar o território do outro.
Os conflitos paulistanos de maio podem entrar na classificação geral de "guerra irregular complexa", a mais nova definição em moda para esse tipo de violência, usada por exemplo pelo IISS de Londres (sigla em inglês para Instituto Internacional de Estudos Estratégicos).
Já a guerra "psicológica" foi de fato perdida. O "terrorismo" em geral associado ao Oriente Médio tomou conta da cidade. Não havia nem prostitutas nas ruas. Duas raras estavam em um raríssimo restaurante aberto, o Sujinho, nome de três casas na rua da Consolação conhecidas no passado pelo impublicável "Bar das P...".
"Fomos de táxi até o programa, muitas estão com medo, nem saíram de casa. Eu até achava que era trote, coisa de terrorista", disse Luana, 20, loira falsa, acompanhada pela colega Michelle, 22, morena, cujos seios fartos em boa parte expostos pareciam negar o frio da madrugada.


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