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PASQUALE CIPRO NETO
"Metonímias, aliterações, metáforas..."
O texto da semana passada terminou com uma referência à figura da catacrese
("aplicação de um termo figurado por falta de termo próprio", na
definição do "Aurélio"). Na essência, a catacrese é uma metáfora desgastada: quando dizemos
"o céu da boca" ou "a barriga da
perna", por exemplo, repetimos o
que vem de pai para filho desde
1912, sem nos darmos conta da
presença do processo metafórico.
Talvez seja conveniente lembrar que a metáfora sintetiza toda a figuração da linguagem. Em
"Meu coração é um balde despejado" (do poema "Tabacaria", de
Álvaro de Campos, heterônimo
de Fernando Pessoa), por exemplo, estabelece-se a metáfora a
partir da semelhança entre um
coração (impreenchível) e um
balde (emborcado).
A metáfora se dá justamente
quando se diz que o coração é um
balde despejado, ou seja, quando
se transfere diretamente para o
coração o que há de semelhante
entre ele e o balde emborcado.
Na memorável letra de "A Fábrica do Poema" (cuja música é
de Adriana Calcanhotto), o saudoso Waly Salomão escreve estas
maravilhas: "Sonho o poema de
arquitetura ideal / Cuja própria
nata de cimento / Encaixa palavra por palavra, tornei-me perito
em extrair / Faíscas das britas e
leite das pedras. / Acordo! / E o
poema todo se esfarrapa, fiapo
por fiapo. / Acordo! / O prédio, pedra e cal, esvoaça / Como um leve
papel solto à mercê do vento e
evola-se, / Cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido / Acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas / E os ouvidos
moucos, / Assim é que saio dos sucessivos sonos: / Vão-se os anéis de
fumo de ópio / E ficam-me os dedos estarrecidos. / Metonímias,
aliterações, metáforas, oxímoros /
Sumidos no sorvedouro (...)".
Notou, caro leitor, como o poeta
trabalha na construção do texto
os próprios recursos de que nele
fala? A começar pelo nome da
obra -que, não custa repetir, é
"A Fábrica do Poema"-, o poeta
se vale essencialmente da figuração da linguagem para pintar e
formar a imagem dessa "fábrica".
Quando o poema-miragem se
desfaz, as metonímias, as aliterações, as metáforas e os oxímoros
somem no sorvedouro...
Que diabo é esse mundaréu de
termos? Bem, como o espaço começa a escassear, vou pinçar apenas um dos nomes que o querido
Waly cita, a aliteração. Trata-se
essencialmente da repetição de
fonemas consonantais, o que se vê
neste trecho de "Pedro Pedreiro"
(de 1965), de Chico Buarque: "Pedro pedreiro penseiro esperando o
trem / Manhã, parece, carece de
esperar também / Para o bem de
quem tem bem / De quem não
tem vintém...".
Morto em maio de 2003, Waly
Salomão não teve a (des)ventura
de chegar aos 60 anos. Morreu
aos 59. O grande Chico, que chega
aos 60 neste sábado, já nos deixa
um interminável legado de metonímias, aliterações, metáforas...
Uma das mais belas seqüências
de aliterações de Chico Buarque
está na antológica letra de "Retrato em Branco e Preto" (cuja
música é de Tom Jobim), de 1968:
"O que é que eu posso contra o encanto / Desse amor que eu nego
tanto / Evito tanto / E que no entanto / Volta sempre a enfeitiçar /
Com seus mesmos tristes velhos
fatos / Que num álbum de retrato
/ Eu teimo em colecionar / (...)
Vou colecionar mais um soneto /
Outro retrato em branco e preto /
A maltratar meu coração".
Evoé, Waly. Evoé, Chico. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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