São Paulo, quinta-feira, 17 de junho de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Metonímias, aliterações, metáforas..."

O texto da semana passada terminou com uma referência à figura da catacrese ("aplicação de um termo figurado por falta de termo próprio", na definição do "Aurélio"). Na essência, a catacrese é uma metáfora desgastada: quando dizemos "o céu da boca" ou "a barriga da perna", por exemplo, repetimos o que vem de pai para filho desde 1912, sem nos darmos conta da presença do processo metafórico.
Talvez seja conveniente lembrar que a metáfora sintetiza toda a figuração da linguagem. Em "Meu coração é um balde despejado" (do poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa), por exemplo, estabelece-se a metáfora a partir da semelhança entre um coração (impreenchível) e um balde (emborcado).
A metáfora se dá justamente quando se diz que o coração é um balde despejado, ou seja, quando se transfere diretamente para o coração o que há de semelhante entre ele e o balde emborcado.
Na memorável letra de "A Fábrica do Poema" (cuja música é de Adriana Calcanhotto), o saudoso Waly Salomão escreve estas maravilhas: "Sonho o poema de arquitetura ideal / Cuja própria nata de cimento / Encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair / Faíscas das britas e leite das pedras. / Acordo! / E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. / Acordo! / O prédio, pedra e cal, esvoaça / Como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se, / Cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido / Acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas / E os ouvidos moucos, / Assim é que saio dos sucessivos sonos: / Vão-se os anéis de fumo de ópio / E ficam-me os dedos estarrecidos. / Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros / Sumidos no sorvedouro (...)".
Notou, caro leitor, como o poeta trabalha na construção do texto os próprios recursos de que nele fala? A começar pelo nome da obra -que, não custa repetir, é "A Fábrica do Poema"-, o poeta se vale essencialmente da figuração da linguagem para pintar e formar a imagem dessa "fábrica". Quando o poema-miragem se desfaz, as metonímias, as aliterações, as metáforas e os oxímoros somem no sorvedouro...
Que diabo é esse mundaréu de termos? Bem, como o espaço começa a escassear, vou pinçar apenas um dos nomes que o querido Waly cita, a aliteração. Trata-se essencialmente da repetição de fonemas consonantais, o que se vê neste trecho de "Pedro Pedreiro" (de 1965), de Chico Buarque: "Pedro pedreiro penseiro esperando o trem / Manhã, parece, carece de esperar também / Para o bem de quem tem bem / De quem não tem vintém...".
Morto em maio de 2003, Waly Salomão não teve a (des)ventura de chegar aos 60 anos. Morreu aos 59. O grande Chico, que chega aos 60 neste sábado, já nos deixa um interminável legado de metonímias, aliterações, metáforas...
Uma das mais belas seqüências de aliterações de Chico Buarque está na antológica letra de "Retrato em Branco e Preto" (cuja música é de Tom Jobim), de 1968: "O que é que eu posso contra o encanto / Desse amor que eu nego tanto / Evito tanto / E que no entanto / Volta sempre a enfeitiçar / Com seus mesmos tristes velhos fatos / Que num álbum de retrato / Eu teimo em colecionar / (...) Vou colecionar mais um soneto / Outro retrato em branco e preto / A maltratar meu coração".
Evoé, Waly. Evoé, Chico. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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