São Paulo, segunda, 17 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COTIDIANO IMAGINÁRIO
Toda nudez será castigada

MOACYR SCLIAR

Empresa japonesa constatou que aparelhos com sensor de radiação infravermelha captam imagens sob as roupas. Câmeras de "raios X" são retiradas do mercado. Mundo, 13/8/98

Tudo o que ele esperava de sua câmera era que gravasse -com alguma sofisticação, talvez- cenas banais, do cotidiano. Mas, de repente, não era só aquilo. De repente, estava vendo, com o olhar de raios X que a ficção atribuiu ao Super-Homem, as peças íntimas das pessoas. Camisetas, cuecas samba-canção, calcinhas, sutiãs (ou a ausência de qualquer dessas peças), agora sabia exatamente o que usavam, sob a roupa, os amigos, os conhecidos, os colegas de trabalho. Não contou para ninguém, claro. Mas era com certo constrangimento que registrava essas imagens inesperadas. Rapaz tímido, não era dado a tais ousadias. Contudo não renunciaria à sua câmera. Afinal, ela representava o progresso e, mais do que isso, a porta de entrada para um universo de fantasias ilimitadas.
Um dia descobriu a vizinha.
Por fora, era uma moça de aparência comum, nem bonita nem feia. Simpática, sim -cumprimentava-o com um sorriso-, mas nada de excepcional em termos de figura feminina. Mas isso só exteriormente. Porque, sob o vestido, ele descobria algo inesperado. Em termos de roupas íntimas, a ousadia dela não conhecia limites. As calcinhas, por exemplo, ultrapassavam tudo o que os sex shops apregoam como peça íntima afrodisíaca. Uma delas tinha, desenhada em local estratégico, uma boca semi-aberta, de lábios escarlates, uma boca desejosa de sexo.
Constatando que ele a olhava, a moça passou a encorajá-lo com olhares aliciantes e sorrisos brejeiros. Acabou convidando-o para ir ao apartamento. Lá, entre uma bebida e outra, perguntou-lhe porque ele se interessava tanto por ela. Ele hesitou, mas -não sabia mentir- acabou contando a história da câmera mágica. Ela arregalou os olhos, pôs-se a rir.
- Mas, então, era isso! Não posso acreditar!
Levantou-se, pediu licença, entrou no quarto e voltou - completamente nua.
- Pronto -disse, sorridente. Agora você não precisa mais de câmera. Agora você tem a realidade.
Ele mirou-a. Consternado. O corpo que via ali, um apenas razoável corpo de mulher, em nada correspondia às suas expectativas. Preferiria mil vezes o que tinha visto com a ajuda da câmera.
Foi embora e nunca mais voltou. Quanto a ela, anda pela rua triste, deprimida. É o castigo da nudez explícita que recusa o disfarce da fantasia.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.