São Paulo, segunda, 17 de agosto de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice COTIDIANO IMAGINÁRIO Toda nudez será castigada
MOACYR SCLIAR Tudo o que ele esperava de sua câmera era que gravasse -com alguma sofisticação, talvez- cenas banais, do cotidiano. Mas, de repente, não era só aquilo. De repente, estava vendo, com o olhar de raios X que a ficção atribuiu ao Super-Homem, as peças íntimas das pessoas. Camisetas, cuecas samba-canção, calcinhas, sutiãs (ou a ausência de qualquer dessas peças), agora sabia exatamente o que usavam, sob a roupa, os amigos, os conhecidos, os colegas de trabalho. Não contou para ninguém, claro. Mas era com certo constrangimento que registrava essas imagens inesperadas. Rapaz tímido, não era dado a tais ousadias. Contudo não renunciaria à sua câmera. Afinal, ela representava o progresso e, mais do que isso, a porta de entrada para um universo de fantasias ilimitadas. Um dia descobriu a vizinha. Por fora, era uma moça de aparência comum, nem bonita nem feia. Simpática, sim -cumprimentava-o com um sorriso-, mas nada de excepcional em termos de figura feminina. Mas isso só exteriormente. Porque, sob o vestido, ele descobria algo inesperado. Em termos de roupas íntimas, a ousadia dela não conhecia limites. As calcinhas, por exemplo, ultrapassavam tudo o que os sex shops apregoam como peça íntima afrodisíaca. Uma delas tinha, desenhada em local estratégico, uma boca semi-aberta, de lábios escarlates, uma boca desejosa de sexo. Constatando que ele a olhava, a moça passou a encorajá-lo com olhares aliciantes e sorrisos brejeiros. Acabou convidando-o para ir ao apartamento. Lá, entre uma bebida e outra, perguntou-lhe porque ele se interessava tanto por ela. Ele hesitou, mas -não sabia mentir- acabou contando a história da câmera mágica. Ela arregalou os olhos, pôs-se a rir. - Mas, então, era isso! Não posso acreditar! Levantou-se, pediu licença, entrou no quarto e voltou - completamente nua. - Pronto -disse, sorridente. Agora você não precisa mais de câmera. Agora você tem a realidade. Ele mirou-a. Consternado. O corpo que via ali, um apenas razoável corpo de mulher, em nada correspondia às suas expectativas. Preferiria mil vezes o que tinha visto com a ajuda da câmera. Foi embora e nunca mais voltou. Quanto a ela, anda pela rua triste, deprimida. É o castigo da nudez explícita que recusa o disfarce da fantasia. O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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