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MARILENE FELINTO
A imprensa e a favela
Que a imprensa é vista como o braço escrito da burguesia -e como uma força repressora tanto quanto a polícia- fica cada vez mais evidente no
tratamento que recebe nas favelas cariocas dominadas pelo tráfico de drogas.
No enterro de quatro traficantes sexta-feira, no Rio, entre os
quais Ernaldo Pinto de Medeiros,
o Uê, todos mortos no presídio de
Bangu 1, mesmo com 60 PMs presentes no cemitério, as equipes de
reportagem foram expulsas do local pelos moradores.
É de se perguntar por que tanta
hostilidade -sentimento cujo
ápice ficou demonstrado em junho, no assassinato do jornalista
Tim Lopes, da Rede Globo, por
traficantes cariocas. A resposta
mais óbvia é a de que a imprensa
"denuncia" os traficantes e "atrapalha" o negócio do tráfico.
Claro que o repúdio de certos
grupos sociais pela imprensa não
é fato novo. No final dos anos 70,
começo dos 80, o principal alvo de
hostilidade do movimento estudantil era a mesma Globo, sempre identificada como aliada dos
governos da ditadura. Hoje os
atores sociais são outros -os traficantes no lugar dos estudantes, e
toda a imprensa, além da Globo.
Isto, sim, é novo, especialmente
em tempos de suposta democracia. Basta ver o caso da repórter-fotográfica da Folha Ana Carolina Fernandes, agredida por familiares de Uê em Bangu, semana
passada.
Mas a desconfiança vai além
dos traficantes e seus familiares:
já se sabe que grande parte dos cidadãos comuns da favela comungam com o traficante, por medo
ou falta de opção. A reação de
grupos da periferia de São Paulo
à imprensa é a mesma, e eles não
são bandidos: o grupo de rap Racionais MCs, para citar um exemplo, demonstra aversão semelhante à grande imprensa.
A resposta é mais ampla, portanto. Trata-se de uma luta contra a opressão, contra o domínio
de uma cultura (o poder econômico da Globo, a cultura de massa que ela impõe) sobre a outra
-a "cultura da droga", que inclui o baile funk que a Globo foi se
intrometer a investigar. A droga é
a única via de o favelado, sem-teto e traficante comprar um apartamento de cobertura na praia de
Ipanema. O país não lhe dá outro
meio de ascender tanto.
Domingo último, a TV Globo
exibiu no "Fantástico" cenas filmadas na clandestinidade em
que traficantes passavam em carros e motos armados até os dentes
(o chamado "bonde") rumo a um
baile funk, em meio à população
local, de mães com crianças no
colo. Mais impressionantes que as
cenas eram os comentários dos locutores da emissora sobre como
os moradores encaravam com
"naturalidade" aquilo.
Ora, a população marginalizada da favela, excluída de tudo,
tem consciência de que é uma
subclasse. O que ela deve encarar
com "naturalidade"? A distribuição desigual de renda, vantagens,
recursos, poder e prestígio? Um
Estado que a ignora? Uma imprensa que a situa fora de seu espectro de interesses?
A imprensa reproduz a ideologia dos que a tecem. Nesta época
de eleição, é constrangedor assistir impotente, aqui no Sudeste, o
apoio à candidatura de José Serra
sendo tramado nos bastidores das
redações. Nas revistas semanais
de maior circulação, as matérias
pró-candidatura Serra são de um
comprometimento criminoso. É
uma vergonha.
A imprensa reproduz a ideologia dos que a tecem. Não é difícil
traçar o perfil do jornalista da imprensa do Sudeste, especialmente
os que ocupam postos-chaves na
sua engrenagem: são da mesma
origem social e étnica, passaram
pelas melhores escolas, têm sobrenomes de grupos ricos e poderosos. Praticamente não haverá ninguém vindo da favela, de fora, de longe, do morro, do nada.
E-mail - mfelinto@uol.com.br
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