São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 2002

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MARILENE FELINTO

A imprensa e a favela

Que a imprensa é vista como o braço escrito da burguesia -e como uma força repressora tanto quanto a polícia- fica cada vez mais evidente no tratamento que recebe nas favelas cariocas dominadas pelo tráfico de drogas.
No enterro de quatro traficantes sexta-feira, no Rio, entre os quais Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, todos mortos no presídio de Bangu 1, mesmo com 60 PMs presentes no cemitério, as equipes de reportagem foram expulsas do local pelos moradores.
É de se perguntar por que tanta hostilidade -sentimento cujo ápice ficou demonstrado em junho, no assassinato do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, por traficantes cariocas. A resposta mais óbvia é a de que a imprensa "denuncia" os traficantes e "atrapalha" o negócio do tráfico.
Claro que o repúdio de certos grupos sociais pela imprensa não é fato novo. No final dos anos 70, começo dos 80, o principal alvo de hostilidade do movimento estudantil era a mesma Globo, sempre identificada como aliada dos governos da ditadura. Hoje os atores sociais são outros -os traficantes no lugar dos estudantes, e toda a imprensa, além da Globo. Isto, sim, é novo, especialmente em tempos de suposta democracia. Basta ver o caso da repórter-fotográfica da Folha Ana Carolina Fernandes, agredida por familiares de Uê em Bangu, semana passada.
Mas a desconfiança vai além dos traficantes e seus familiares: já se sabe que grande parte dos cidadãos comuns da favela comungam com o traficante, por medo ou falta de opção. A reação de grupos da periferia de São Paulo à imprensa é a mesma, e eles não são bandidos: o grupo de rap Racionais MCs, para citar um exemplo, demonstra aversão semelhante à grande imprensa.
A resposta é mais ampla, portanto. Trata-se de uma luta contra a opressão, contra o domínio de uma cultura (o poder econômico da Globo, a cultura de massa que ela impõe) sobre a outra -a "cultura da droga", que inclui o baile funk que a Globo foi se intrometer a investigar. A droga é a única via de o favelado, sem-teto e traficante comprar um apartamento de cobertura na praia de Ipanema. O país não lhe dá outro meio de ascender tanto.
Domingo último, a TV Globo exibiu no "Fantástico" cenas filmadas na clandestinidade em que traficantes passavam em carros e motos armados até os dentes (o chamado "bonde") rumo a um baile funk, em meio à população local, de mães com crianças no colo. Mais impressionantes que as cenas eram os comentários dos locutores da emissora sobre como os moradores encaravam com "naturalidade" aquilo.
Ora, a população marginalizada da favela, excluída de tudo, tem consciência de que é uma subclasse. O que ela deve encarar com "naturalidade"? A distribuição desigual de renda, vantagens, recursos, poder e prestígio? Um Estado que a ignora? Uma imprensa que a situa fora de seu espectro de interesses?
A imprensa reproduz a ideologia dos que a tecem. Nesta época de eleição, é constrangedor assistir impotente, aqui no Sudeste, o apoio à candidatura de José Serra sendo tramado nos bastidores das redações. Nas revistas semanais de maior circulação, as matérias pró-candidatura Serra são de um comprometimento criminoso. É uma vergonha.
A imprensa reproduz a ideologia dos que a tecem. Não é difícil traçar o perfil do jornalista da imprensa do Sudeste, especialmente os que ocupam postos-chaves na sua engrenagem: são da mesma origem social e étnica, passaram pelas melhores escolas, têm sobrenomes de grupos ricos e poderosos. Praticamente não haverá ninguém vindo da favela, de fora, de longe, do morro, do nada.

E-mail - mfelinto@uol.com.br


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