São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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DANUZA LEÃO

Fui salva por Fernando Sabino

Há muitos anos eu não via Fernando, nem sei quantos. Mas lembro com perfeita nitidez quando nos conhecemos.
Minha família havia chegado de Vitória e morávamos num edifício em Copacabana onde também moravam Fernando e Helena, recém-casados e chegados de Belo Horizonte.
Eu tinha dez anos, era uma menina muito bonitinha e o casal brincava comigo sempre que nos encontrávamos no elevador.
O tempo foi passando e alguns anos mais tarde, já mocinha, fiquei amiga de Lila Boscoli, que começou a namorar Vinicius (de Moraes), e aí viramos uma turma; uma turma que costumava freqüentar um barzinho em Copacabana que se chamava Tudo Azul. Na minha memória, foi o primeiro piano-bar da cidade, onde, aliás, tocava Tom Jobim (ele tocou em quase todos), mas um amigo com quem falei me garantiu que não, que o primeiro foi o Maxim's. Cheguei a uma triste conclusão: está difícil encontrar uma pessoa com quem checar qual foi o primeiro; os que sabiam já se foram.
Mais anos se passaram, e eu via Fernando raramente, sempre por casualidade; ele continuava gentil, bem-humorado, de uma juventude mental extraordinária e sempre dando força para qualquer coisa que eu quisesse fazer, mesmo as mais loucas.
Ele adorava novidades: lembro que uma vez trouxe dos Estados Unidos uma maquininha que era instalada ao lado do cinzeiro do carro, com o maço de cigarros dentro. Apertando um botão, o cigarro pulava, já aceso. Passei anos sem ver Fernando.
A partir de 93, tive como colega de trabalho um grande amigo dele, Wilson Figueiredo. Durante quase dez anos nos vimos diariamente, e muitas, muitas vezes, ele quis me reaproximar de Fernando, tentando marcar um encontro qualquer, mas eu estava numa fase em que não queria ver ninguém, tinha medo das pessoas. Não de todas, só daquelas que falariam comigo numa linguagem não social, que quisessem saber de verdade como eu estava, que procurariam verdadeiramente me ajudar. Eu tive medo, não estava preparada para isso; nos falamos algumas vezes por telefone, mas esse encontro nunca aconteceu. Ele entendeu.
Fernando morreu, e sua morte me trouxe recordações, lembranças de um tempo completamente esquecido; do edifício Elizabeth, onde morei, do endereço, av. Copacabana, 769, do número do meu telefone, 37-8045. Que mistério é a memória.
Como morávamos no mesmo edifício, freqüentávamos o mesmo trecho de praia, o Posto 4. E minha memória foi ainda mais longe: lembrei que mais ou menos aos 11 anos um dia fui à praia com meu pai, me atirei na água e fui para além da arrebentação, sem ter noção dos perigos do mar de Copacabana, que é aberto.
Uma onda me levou e caí num redomoinho; não consegui voltar, comecei a me debater, a engolir água, a me afogar. Juntou gente na areia olhando e apontando para aquela cabecinha no meio das ondas enormes; em algum momento, sem conseguir nadar de volta e já sem forças para respirar, senti alguém me segurando. Essa pessoa atravessou a arrebentação comigo pelo braço e me carregou para a praia, onde cheguei praticamente desmaiada.
Minha vida foi salva por Fernando Sabino.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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