São Paulo, terça-feira, 17 de novembro de 2009

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CECILIA GIANNETTI

Pollyana Moça que pague a conta!


Não é digno país algum onde a crítica sobre questões nacionais é prescindida pelo seu otimismo

CASSANDRA , gêmea de Heleno, e sua amiga Pollyana Moça, tinham encontro marcado em Ipanema. Que agora é território mais ou menos neutro, pois não é a Copacabana da quase ex-discoteca Help pra gringos e mulheres a granel, nem é o ex-Lebronx de Maneco (que até ele mesmo já trocou por Búzios e bocejos em horário nobre).
As duas beldades sentaram-se juntas no café de uma livraria bacanuda, que serve comidinhas num mezanino onde se vai pra ver e ser visto.
A Cassandra fez frisson ao adentrar o bistrô letrado com aquela cabeleira ruiva-aloirada a despencar-lhe cachos pelas costas, e uma clâmide de estamparia vistosa e alegre.
Pollyana Moça chegou um pouco atrasada, como agora era parte de sua antes vigorosa personalidade, algo combalida pelas insistentes perfídias da humanidade. Veio de preto dos pés à cabeça, mas com um sorrisinho que insinuava um resto de esperança no peito sombrio.
Foram direto ao assunto com a garçonete: um suco de laranja e uma água com gás pra Cassandra e uísque cowboy pra Pollyana Moça, apesar das 10h da manhã mal batidas no relógio da igreja em frente à praça Nossa Senhora da Paz.
É que Cassandra preferia permanecer sóbria ao se submeter ao otimismo da amiga. Embora abalada em questões de fé aqui e acolá, Pollyana Moça era predominantemente otimista -só quando bebia, claro.
Feitos os pedidos, Cassandra tirou da bolsa a "Economist" da semana passada, com o Cristo Redentor com rabo de foguete na capa, "Brasil decolando". Pollyana Moça, por sua vez, trouxera uma cópia de cada jornal brasileiro que tinha o apagão na primeira página. Cada uma buscando achar, em profunda pesquisa do território oposto, falhas na causa da outra.
É um compromisso semanal das amigas; encontram-se para checar e debater os níveis de otimismo cego e pessimismo oportunista que podem detectar em reportagens sobre o país tropical dos países tropicais (Cassandra adverte: ufanismo reduz significativamente a massa cinzenta).
Cassandra abriu os trabalhos, com a ironia que lhe é peculiar. "O inexplicado apagão foi só o começo. Falta água também. Se continuar, em breve podemos nos procurar na escuridão pelo malcheiro um do outro!"
Pollyana Moça rebateu, com o pouco de candura que a realidade lhe permite manter, começou a artilharia assim que o primeiro gole de uísque rasgou sua gargantinha delicada: "Querida, sempre há um aeroporto com portão de saída para quem prefere residir em outros países. A CNN mesma mostrou os apagões europeus, os norte-americanos... não ficamos em nadica devendo a eles! Somos tão bons quanto em questão de apagão! Não precisamos diminuir nossa autoestima, não precisamos de gente como você (perdoa a sinceridade, amiga), que só reclama, a quem não interessa vislumbrar o arco-íris, um futuro melhor que está se descortinando. E é tão belo esse futuro, ó, Cassandra!"
Cassandra tomou do uísque da amiga o que restava e retrucou: "Essa gente que só reclama" o faz porque tem motivos. Calar-se diante dos motivos não fortalece nossa "autoestima". Pelo contrário, incentiva a ignorância. Ninguém vive no País das Maravilhas. Mas não é porque o mundo inteiro também tem problemas que não devemos questionar a origem dos nossos.
No caso do apagão, por exemplo, quem preferir crer que foi causado por "raios", que se acomode com tal informação, meta a cabeça num buraco dentro da terra e "boa viagem". "Não é digno país algum onde a crítica sobre questões nacionais é prescindida pelo seu otimismo."
Pollyana pagou a conta.

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