São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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MORTE NA PISCINA
Pai de estudante diz que "educação tradicional" impediu filho de perceber perigo em festa de calouros
"Edison não soube reconhecer
tigres selvagens"

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

O paulistano Edison Tsung-Chi Hsueh, encontrado morto no clube da Faculdade de Medicina da USP, não se chamava apenas Edison. Também se chamava Ordem.
Ordem, correção, aquele que rejeita a rebeldia. É o que significa Tsung-Chi, o nome chinês que o estudante recebeu de Feng Ming, o pai, e Yin Hwa, a mãe.
O casal, que nasceu em Taiwan, teve outros dois filhos homens antes de Edison. Batizou-os igualmente com expressões orientais, que querem dizer calma e sorte.
Os nomes dos três filhos manifestam as crenças da família Hsueh, adepta do budismo e da não-violência. Crenças que, pela primeira vez em 56 anos de vida, o engenheiro civil Feng Ming teme não fazerem sentido.
"Ensinei para Edison o que aprendi com meus pais", conta, num português titubeante. "Respeitar regras, respeitar mais velhos, respeitar professor, respeitar estudante veterano. Não beber. Não fumar. Não ferir o outro. Cultivar o coração puro. E Edison cresceu assim. Bom aluno. Bom filho. Mesmo um tigre, se criado sempre dentro de casa, vira um tigre manso. Hoje penso que, por causa da educação tradicional, Edison não soube reconhecer os tigres selvagens."
Magro, 1m70 de altura, Feng Ming se expressa em voz baixa. Pontua frases com longos silêncios, traído pelo idioma que ainda lhe escapa, embora viva no Brasil desde 1969. Preza a intimidade familiar e não responde perguntas que julga invasivas. "Deixa pra lá", pede, abanando as mãos.
Recorda que Edison, morto aos 22 anos, mal saía de casa e passava muito tempo calado. "Conversava mais com mãe, porque normalmente filho homem tem dificuldade para conversar com pai. Nunca descobri a razão. É uma regra da natureza."
Talvez por se atrapalhar com a língua ou por um ato falho, Feng Ming às vezes usa verbos no presente para se referir a Edison. "Ele gosta de computador. Joga xadrez. Não tem namorada. Não dirige. Não reclama de nada. Nunca sai sem avisar. E, caso esteja na rua à noite, telefona pedindo que o pegue. Vou buscar de carro, mesmo se for longe."
No dia 22 de fevereiro, o rapaz disse que iria para a aula. "Ele não sabia. Eu também não sabia. Não sabia que haveria festa. USP não avisou que primeiro dia de aula é dia de festa. Não sabia que alunos iriam para clube. Se soubesse, avisaria: cuidado com piscina, filho, você não aprendeu a nadar."
Edison deixou o sobrado da família, na zona sul de São Paulo, pela manhã. "Tarde da noite, continuava fora. Estranhei, porque não avisou. Fiquei esperando perto do telefone, mas não aguentei o sono e dormi. Agora, sinto um peso. Está pesado para mim."
Culpa-se por não ter saído em busca do filho. O laudo do IML (Instituto Médico Legal) indica que, àquela altura da noite, o pai pouco poderia fazer: a morte do estudante na piscina do clube ocorreu entre as 12h e as 16h. "Não importa. Era meu dever procurar."
Outro fato o atormenta: antes de entrar na USP, Edison já cursava medicina em uma faculdade particular, a Santa Casa. "Mas sonhava com USP, com nome da USP. E queria economizar nosso dinheiro. Pensava em mim, que estou desempregado. Pensava na mãe, que cuida de um pequeno bazar."
A morte do filho não alterou os hábitos religiosos do casal. Duas vezes por dia, Feng Ming acende incensos e medita no santuário que mantém em um dos quartos do sobrado.
"Para Buda, não há tragédia. Edison cumpriu seu destino. Morreu e vai nascer de novo, em outro lugar", explica. "Mas para mim... Não sei o que se passou. Não sei cadê Edison. Sou apenas um homem comum."


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