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MORTE NA PISCINA
Pai de estudante diz que "educação tradicional" impediu filho de perceber perigo em festa de calouros
"Edison não soube reconhecer
tigres selvagens"
ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local
O paulistano Edison Tsung-Chi
Hsueh, encontrado morto no clube da Faculdade de Medicina da
USP, não se chamava apenas Edison. Também se chamava Ordem.
Ordem, correção, aquele que rejeita a rebeldia. É o que significa
Tsung-Chi, o nome chinês que o
estudante recebeu de Feng Ming, o
pai, e Yin Hwa, a mãe.
O casal, que nasceu em Taiwan,
teve outros dois filhos homens antes de Edison. Batizou-os igualmente com expressões orientais,
que querem dizer calma e sorte.
Os nomes dos três filhos manifestam as crenças da família
Hsueh, adepta do budismo e da
não-violência. Crenças que, pela
primeira vez em 56 anos de vida, o
engenheiro civil Feng Ming teme
não fazerem sentido.
"Ensinei para Edison o que
aprendi com meus pais", conta,
num português titubeante. "Respeitar regras, respeitar mais velhos, respeitar professor, respeitar
estudante veterano. Não beber.
Não fumar. Não ferir o outro. Cultivar o coração puro. E Edison
cresceu assim. Bom aluno. Bom filho. Mesmo um tigre, se criado
sempre dentro de casa, vira um tigre manso. Hoje penso que, por
causa da educação tradicional,
Edison não soube reconhecer os tigres selvagens."
Magro, 1m70 de altura, Feng
Ming se expressa em voz baixa.
Pontua frases com longos silêncios, traído pelo idioma que ainda
lhe escapa, embora viva no Brasil
desde 1969. Preza a intimidade familiar e não responde perguntas
que julga invasivas. "Deixa pra lá",
pede, abanando as mãos.
Recorda que Edison, morto aos
22 anos, mal saía de casa e passava
muito tempo calado. "Conversava
mais com mãe, porque normalmente filho homem tem dificuldade para conversar com pai. Nunca
descobri a razão. É uma regra da
natureza."
Talvez por se atrapalhar com a
língua ou por um ato falho, Feng
Ming às vezes usa verbos no presente para se referir a Edison. "Ele
gosta de computador. Joga xadrez.
Não tem namorada. Não dirige.
Não reclama de nada. Nunca sai
sem avisar. E, caso esteja na rua à
noite, telefona pedindo que o pegue. Vou buscar de carro, mesmo
se for longe."
No dia 22 de fevereiro, o rapaz
disse que iria para a aula. "Ele não
sabia. Eu também não sabia. Não
sabia que haveria festa. USP não
avisou que primeiro dia de aula é
dia de festa. Não sabia que alunos
iriam para clube. Se soubesse, avisaria: cuidado com piscina, filho,
você não aprendeu a nadar."
Edison deixou o sobrado da família, na zona sul de São Paulo, pela manhã. "Tarde da noite, continuava fora. Estranhei, porque não
avisou. Fiquei esperando perto do
telefone, mas não aguentei o sono
e dormi. Agora, sinto um peso. Está pesado para mim."
Culpa-se por não ter saído em
busca do filho. O laudo do IML
(Instituto Médico Legal) indica
que, àquela altura da noite, o pai
pouco poderia fazer: a morte do
estudante na piscina do clube
ocorreu entre as 12h e as 16h. "Não
importa. Era meu dever procurar."
Outro fato o atormenta: antes de
entrar na USP, Edison já cursava
medicina em uma faculdade particular, a Santa Casa. "Mas sonhava
com USP, com nome da USP. E
queria economizar nosso dinheiro. Pensava em mim, que estou desempregado. Pensava na mãe, que
cuida de um pequeno bazar."
A morte do filho não alterou os
hábitos religiosos do casal. Duas
vezes por dia, Feng Ming acende
incensos e medita no santuário
que mantém em um dos quartos
do sobrado.
"Para Buda, não há tragédia. Edison cumpriu seu destino. Morreu e
vai nascer de novo, em outro lugar", explica. "Mas para mim...
Não sei o que se passou. Não sei cadê Edison. Sou apenas um homem
comum."
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