São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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GILBERTO DIMENSTEIN
Conversa de bêbado

Na periferia de Brasília, uma escola pública resolveu funcionar durante a madrugada e finais de semana, aberta para as gangues.
Localizada a 35 quilômetros do Plano Piloto, Planaltina é uma praça de guerra, onde jovens se digladiam movidos a álcool e droga. Muitas vezes, a pancadaria é passatempo, na busca de lazer.
Numa tentativa de domar o conflito, a escola convida os integrantes de gangues a disputar torneios de futebol em sua quadra -transferem as rixas para a bola.
Aparentemente exótico, o horário dos torneios tem uma razão simples. Em todo o país, as estatísticas mostram que, nesse período, ocorre a maioria dos casos de violência, especialmente nos finais de semana.
É uma ótima lição -especialmente para os paulistanos, atentos para o debate sobre o fechamento dos bares depois da 1h.
Por trás da decisão de fechar os bares, há uma discussão séria: a imensa maioria dos casos de violência tem drogas no meio, protagonizados dentro de um bar.
A análise dos homicídios revela que os crimes ocorrem de noite, com maior incidência nos finais de semana na periferia, geralmente por motivos fúteis; discussão sobre futebol, mulher, desentendimentos familiares, por exemplo.
As estatísticas indicam que os homicídios nos bairros de classe média são semelhantes aos dos países mais ricos.
É uma realidade escondida e desconhecida, graças ao clima de histeria.

É sabido que controlar o consumo de álcool e de drogas é um dos mecanismos para reduzir os níveis de violência.
Fiscalizar e fechar bares depois de determinado horário teria até sentido -desde que como um das peças de um projeto.
O que funciona, de fato, são experiências como a de Planaltina, nas quais espaços públicos se transformam em centros de convivência, cercados de educadores, psicólogos e médicos.
Iscas como esporte e arte têm servido, nos mais variados países, para atrair, envolver e encantar jovens delinquentes, recuperados em sua auto-estima.
A cura definitiva é quando se agregam a escola formal e, depois, programas de geração de renda.
Droga e álcool não são causas de violência. São consequência da percepção cotidiana de marginalidade.

A grande bebedeira nacional não é só a lerdeza, em geral, do poder público -incompetência de aplicar medidas simples e eficazes como manter as escolas abertas nos finais de semana.
É, além da lerdeza, a incapacidade de suas várias esferas trabalharem juntas, repartindo e complementando responsabilidades.
Se os governos federal, estaduais e municipais, aliados a grupos empresariais, sindicais e associações não-governamentais quisessem reduzir a violência, não precisariam gastar quase nada além de seus orçamentos.
Quanto custa manter as escolas abertas nos finais de semana, com atendimento médico e psicológico, acompanhados de programas de arte, esporte e reforço escolar?
Há milhares (repito, milhares) de cidadãos dispostos a colaborar gratuitamente, desde que convencidos de que o esforço é sério.
Pela falta de uma estratégia global, capaz de ser articulada em conjunto em diferentes esferas, bobagens prosperam, como se fossem conversa de bêbado.
Alguns propõem reduzir a maioridade penal, imaginando que trancafiar adolescentes numa prisão de adultos resolve o problema; há quem defenda a pena de morte. O fechamento dos bares se insere nesse clima de conversa de bêbado, muita falação e pouca consequência.

PS - Bom exemplo. A Federação Paulista de Futebol doou R$ 1 milhão para o Instituto de Solidariedade (ISO), entidade não-governamental, para que se construa centros de esporte na periferia, combinado com atividades educacionais e artísticas.
Em parceria com a Secretaria de Esportes, esse projeto envolve grandes grupos empresariais, visando atrair crianças de rua -uma experiência-piloto já funciona no Ginásio do Ibirapuera.
Idéia semelhante, no Rio, mostra que, se bem executado, o projeto funciona. É o caso da Mangueira, onde despencaram a níveis insignificantes os crimes cometidos por adolescentes.
O fato ridículo: a cidade de São Paulo tem, no máximo, 2.000 crianças de rua.
Só a incompetência e o descaso explicam como a cidade mais rica da América Latina não sabe lidar com tão poucas crianças em estado de decomposição.

E-mail: gdimen@uol.com.br


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