São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 2000

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MOACYR SCLIAR
O dilema da porta giratória

Poucos dias depois do incidente com o homem da jaqueta, uma mulher, ainda jovem, tentou entrar numa agência bancária e também ficou presa na porta. Em princípio, os seguranças tiveram dificuldade em identificar que tipo de objeto havia sido detectado pelo equipamento eletrônico, mas a própria moça encarregou-se de avisá-los:
-É isto aqui.
Tratava-se de um grande broche de metal que ela tinha preso ao casaco.
-Pois então tire, disse o segurança.
Para sua surpresa, a resposta foi uma irritada negativa:
-Não tiro coisa nenhuma. E soltem de uma vez esta porta que eu quero entrar.
O gerente foi chamado. A ele a moça explicou, num tom muito mais cortês, que a jóia, na realidade uma bijuteria barata, era a última lembrança que tinha de sua falecida mãe:
-Ela pediu que eu a levasse sempre comigo. Tirar este broche, agora, seria uma afronta à sua memória.
Atrapalhado, o gerente não sabia o que fazer. Poderia, claro, endurecer; mas... e se a moça armasse um escândalo? Se a coisa terminasse na TV, nos jornais? Decidiu consultar seus superiores. Enquanto isso, a moça teria de aguardar ali, presa na porta.
-Não me importo -disse ela-; desde que eu possa cumprir o último pedido de minha querida mãe, nada é problema para mim.
O gerente telefonou para seu superior imediato, que também ficou perplexo com o dilema: nunca se vira diante de uma situação tão inusitada. Teve, pois, de ligar para a direção geral do banco. Uma reunião de emergência foi convocada, contando inclusive com a presença de assessores de imprensa. Enquanto isso, a situação na agência era caótica; as pessoas presas lá dentro tinham sido retiradas por uma porta lateral, mas a fila à frente era enorme. Ao telefone, o gerente implorava por uma solução.
Que finalmente veio: a cliente poderia entrar, com broche e tudo.
Uma vez lá dentro, o assalto foi rápido. Sacando um pequeno revólver da bolsa, ela mandou todo mundo deitar no chão, a rotina de sempre. Coletou o dinheiro dos caixas e saiu sem problema. Na pressa, o broche desprendeu-se do casaco e caiu no chão, mas ela não se deu ao trabalho de apanhá-lo. O gerente disse depois que nunca tinha visto tamanha falta de consideração com o último desejo de uma mãe moribunda.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.




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