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ENTREVISTA/CELSO LUIZ LIMONGI
Presidente do TJ de SP critica polícias e presídio "cruel"
Para Limongi, o regime de prisão mais rígido é inconstitucional; desembargador diz que ação do CNJ em assuntos administrativos retira a autonomia dos tribunais
A polícia de São Paulo não tem condições de enfrentar
o crime organizado porque não está bem aparelhada.
A opinião é do presidente do Tribunal de Justiça de
São Paulo, desembargador Celso Luiz Limongi, que
defende mais investimentos nas polícias militar e civil
para atuar no combate aos criminosos que estão dentro e fora das cadeias. "Tanto uma quanto outra [polícia] não tem a devida estrutura", disse Limongi em
entrevista à Folha. Para o desembargador a situação
do sistema prisional é conseqüência de décadas de
descaso do Estado. Limongi reforçou o entendimento
de desembargadores do TJ que consideraram o RDD
(Regime Disciplinar Diferenciado) inconstitucional e
se posicionou contra o regime por ser "cruel". Também defendeu a pena alternativa como forma de se
evitar a superlotação nas penitenciárias.
(REGIANE SOARES)
FOLHA - O Poder Judiciário age com
independência no Brasil?
CELSO LUIZ LIMONGI - Há independência. Mas o Conselho Nacional de Justiça [CNJ], composto
por pessoas estranhas à magistratura, além de magistrados,
vem imiscuindo-se em assuntos internos de todos os tribunais em termos administrativos, e isso retira dos tribunais a
sua independência. Claro que
reconheço que pode haver até
uma vantagem na unificação da
filosofia na administração dos
tribunais. Mas não podemos
perder essa autonomia, e nós
perdemos.
FOLHA - De que forma o tribunal
perdeu a autonomia?
LIMONGI - O tribunal determina
alguma coisa, o CNJ revoga a
medida. Nós fazemos, eles desfazem. Fica muito difícil trabalhar desse jeito, e é uma insegurança para todos nós. Eles anulam concursos da magistratura
porque há uma reclamação, às
vezes, individual. Reconheço
que talvez fosse mesmo necessário que houvesse um órgão
superior, mas composto só de
magistrados que compreendem melhor o Judiciário.
FOLHA - Qual foi a maior interferência do CNJ em São Paulo?
LIMONGI - Teve uma consulta
do CNJ em termos jurisdicionais quando foi concedida liberdade provisória à Suzane
von Richthofen [condenada a
39 anos de prisão pelo assassinato dos pais]. O CNJ interpelou os membros da 5ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça. Foi o único caso de interferência jurisdicional. O problema é que não foi a 5ª Câmara
que concedeu a liberdade, mas
o STJ (Superior Tribunal de
Justiça).
FOLHA - E como pode mudar essa
situação?
LIMONGI - Uma nova lei, talvez.
Uma regulamentação melhor
das funções do CNJ limitando
esses poderes. Limitando a reclamações coletivas, e não individuais, por exemplo.
FOLHA - Como membro-fundador
da Associação dos Juízes para Democracia, como o senhor avalia a
proposta dos "juízes sem rosto"?
LIMONGI - Eu não vejo necessidade de chegar a esse extremo.
Nós não estamos na Itália, nem
na Colômbia. O crime aqui não
chegou a esse índice de violência, e nem vai chegar, eu acredito. Na Itália, eram atentados
com explosivos, algo muito violento e preparado. Não acredito
nessa questão de não identificar os juízes. É uma função que
temos que exercer sem nenhum receio. Da mesma forma
que um policial militar ou civil
é obrigado a enfrentar diretamente um criminoso.
FOLHA - Essa é a posição do senhor
mesmo com o caso do assassinato
de um juiz no interior do Estado?
LIMONGI - Mesmo. Principalmente no interior do Estado os
juízes são mais conhecidos,
mais visados. Não há necessidade dessa medida extrema de
não identificar os juízes.
FOLHA - Qual foi o resultado da
consultoria para modernização administrativa feita pela Fundação Getúlio Vargas?
LIMONGI - Foi um trabalho de 17
meses para modernizar a administração em primeira instância. Esse estudo concluiu que
precisa de 180 funcionários por
ano para fazer as autuações,
que é a montagem do processo.
Em segundo grau, reautua-se,
põe uma outra capa. A cada recurso, uma nova autuação. Isso
não tem cabimento, é só colocar o código de barra e fixar a
numeração. É uma rotina tola,
desnecessária, supérflua. Isso
já está mudando. Também percebemos que de cada três funcionários que nós temos, dois
são de atividades meio (administrativa) e um só da atividade
fim (que é o processo). Nós temos que fazer o contrário.
FOLHA - E como está o processo de
informatização do Judiciário?
LIMONGI - Nós estamos caminhando bem, mas ainda com
um serviço que não é de boa
qualidade. Eu não gosto do serviço da Prodesp. Eu contratei a
Microsoft para prestar serviços
para o tribunal. Mas também
não quero afastar a Prodesp de
uma vez. É conveniente que
continuem com a gente, até por
questões técnicas, pois já sabem como funcionam o sistema do tribunal.
FOLHA - Como o senhor avalia a crítica de que o Poder Judiciário é responsável pela superlotação de presídios, pois os juízes não apreciam os
pedidos de progressão de pena?
LIMONGI - Isso é uma matéria
jurisdicional, há realmente certo rigor. Os juízes criminais são
mesmo rigorosos, levando em
conta até mesmo o clamor da
população. Acho que existem
razões ponderáveis para não
conceder benefícios. Pessoalmente, eu penso que a prisão só
deve ser decretada nos casos
onde há violência física. Um
crime como estelionato não há
necessidade de impor pena privativa de liberdade. Uma pena
alternativa parece-me suficiente. Acho internar [um adolescente] ou prender são medidas
que só devem ser tomadas em
último caso, porque nem os estabelecimentos para adolescentes nem as prisões educam.
Pelo contrário, tornam o indivíduo mais perigoso. O ambiente é deletério e o indivíduo sai
muito mais duro. Sai endurecido porque é desrespeitado,
seus direitos são desrespeitados. O Estado [o Executivo] não
capacita seus funcionários e é
preciso rever essa filosofia. É
preciso pensar em respeitar todos esses direitos e educar
quem está nesses regimes.
Quem é preso provisório não
deveria ficar com quem é condenado, seria caso de separá-los. Mas o Estado não consegue
fazer isso, e não faz.
FOLHA - O senhor acredita que a
pena alternativa é a única forma de
evitar a superlotação nas cadeias?
LIMONGI - É mais que isso. É
evitar a superlotação, o endurecimento do preso e a especialização na prática de crimes.
FOLHA - Mas quando o senhor fala
em direito dos presos, também não
é um direito que o processo de um
condenado seja revisto e, se puder,
que ele seja solto?
LIMONGI - Mas eu acho que ele
tem esse direito. Tudo isso tem
que ser respeitado. Agora, se
nós temos visões mais duras, se
nós temos juízes que tenham
outra visão, não se pode fazer
muita coisa. É preciso que haja
essa compreensão geral de que
o endurecimento da lei penal,
colocar presos na cadeia, jogá-los na cadeia, não vai resolver.
Como não resolveu. Uma prova
é essa: não resolveu até hoje. Os
juízes sempre foram rigorosos,
e não adianta falar que nossa
Justiça não pune. Pune sim. Eu
tenho preso aqui em São Paulo
dois Morumbis cheios. São
quase 150 mil presos no Estado
de São Paulo.
FOLHA - Como presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, o senhor
não teria como orientar os juízes, ou
eles têm total autonomia para exigir, inclusive, documentos e exames
para soltar um preso?
LIMONGI - Mas eu não posso ferir a autonomia [dos juízes]. A
jurisdição é sagrada. Nem o Judiciário, nem o Legislativo,
nem o Executivo podem ferir a
independência do juiz no julgamento de uma ação.
FOLHA - O senhor acredita que o
RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) é um regime que se "assemelha
à masmorra da Idade Média", como
definiu a 1ª Câmara Criminal?
LIMONGI - Eu não gosto do
RDD. Não vejo com bons olhos
ou com simpatia o RDD. É um
castigo que se impõe em razão
de falta grave cometida no
cumprimento de uma pena.
Agora, às vezes, é necessário,
porque também temos criminosos de alta periculosidade e
eles precisam ser segregados do
convívio com outras pessoas.
Mas isso não pode ser por 360
dias. Acho que um isolamento
por esse prazo é uma verdadeira crueldade. O prazo máximo
de 90 dias eu até posso admitir.
FOLHA - E o senhor também considera o RDD inconstitucional?
LIMONGI - No meu modo de ver
é inconstitucional por ser
cruel. Sinceramente eu não
gosto do RDD. Não acho que o
Estado possa descer ao próprio
nível de um criminoso.
FOLHA - Mas então o que se deve
fazer para controlar presos que de
dentro das cadeias continuam comandando o crime?
LIMONGI - Mas o que a polícia
tem que fazer é agir sempre
com inteligência, no sentido
técnico da palavra. Deve ter os
meios necessários de investigação para prevenir que isso
aconteça. Isso é obrigação da
polícia, e isso é possível. Claro
que depende de recursos técnicos, de recursos humanos, de
capacitação dos nossos policiais.
FOLHA - O senhor acha que a polícia
de São Paulo está mal aparelhada?
LIMONGI - Acho que sim. Eu
não vejo a polícia com capacidade para enfrentar o crime organizado. Acho que precisa de
mais investimentos nas polícias militar e civil. Tanto uma
quanto outra não tem a devida
estrutura.
FOLHA - O que aconteceu com o Estado de São Paulo nesse setor?
LIMONGI - Aconteceu que por
décadas todo esse sistema prisional foi relegado para um plano secundário. Agora todos nós
sofremos as conseqüências
dessa desídia do Poder Executivo. Não há um culpado, todos
são responsáveis e a sociedade
também. É preciso compreender que os presos têm os seus
direitos, que as pessoas necessitam de educação, moradia,
trabalho. Quando o crime começou atingir as classes média
e alta, aí então acordamos para
a existência do crime. E agora é
tarde e precisamos resgatar toda a nossa culpa. Não só a "elite
branca", da sociedade inteira.
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