São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 2006

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ENTREVISTA/CELSO LUIZ LIMONGI

Presidente do TJ de SP critica polícias e presídio "cruel"

Para Limongi, o regime de prisão mais rígido é inconstitucional; desembargador diz que ação do CNJ em assuntos administrativos retira a autonomia dos tribunais

A polícia de São Paulo não tem condições de enfrentar o crime organizado porque não está bem aparelhada. A opinião é do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Celso Luiz Limongi, que defende mais investimentos nas polícias militar e civil para atuar no combate aos criminosos que estão dentro e fora das cadeias. "Tanto uma quanto outra [polícia] não tem a devida estrutura", disse Limongi em entrevista à Folha. Para o desembargador a situação do sistema prisional é conseqüência de décadas de descaso do Estado. Limongi reforçou o entendimento de desembargadores do TJ que consideraram o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) inconstitucional e se posicionou contra o regime por ser "cruel". Também defendeu a pena alternativa como forma de se evitar a superlotação nas penitenciárias. (REGIANE SOARES)

FOLHA - O Poder Judiciário age com independência no Brasil?
CELSO LUIZ LIMONGI
- Há independência. Mas o Conselho Nacional de Justiça [CNJ], composto por pessoas estranhas à magistratura, além de magistrados, vem imiscuindo-se em assuntos internos de todos os tribunais em termos administrativos, e isso retira dos tribunais a sua independência. Claro que reconheço que pode haver até uma vantagem na unificação da filosofia na administração dos tribunais. Mas não podemos perder essa autonomia, e nós perdemos.

FOLHA - De que forma o tribunal perdeu a autonomia?
LIMONGI
- O tribunal determina alguma coisa, o CNJ revoga a medida. Nós fazemos, eles desfazem. Fica muito difícil trabalhar desse jeito, e é uma insegurança para todos nós. Eles anulam concursos da magistratura porque há uma reclamação, às vezes, individual. Reconheço que talvez fosse mesmo necessário que houvesse um órgão superior, mas composto só de magistrados que compreendem melhor o Judiciário.

FOLHA - Qual foi a maior interferência do CNJ em São Paulo?
LIMONGI
- Teve uma consulta do CNJ em termos jurisdicionais quando foi concedida liberdade provisória à Suzane von Richthofen [condenada a 39 anos de prisão pelo assassinato dos pais]. O CNJ interpelou os membros da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. Foi o único caso de interferência jurisdicional. O problema é que não foi a 5ª Câmara que concedeu a liberdade, mas o STJ (Superior Tribunal de Justiça).

FOLHA - E como pode mudar essa situação?
LIMONGI
- Uma nova lei, talvez. Uma regulamentação melhor das funções do CNJ limitando esses poderes. Limitando a reclamações coletivas, e não individuais, por exemplo.

FOLHA - Como membro-fundador da Associação dos Juízes para Democracia, como o senhor avalia a proposta dos "juízes sem rosto"?
LIMONGI
- Eu não vejo necessidade de chegar a esse extremo. Nós não estamos na Itália, nem na Colômbia. O crime aqui não chegou a esse índice de violência, e nem vai chegar, eu acredito. Na Itália, eram atentados com explosivos, algo muito violento e preparado. Não acredito nessa questão de não identificar os juízes. É uma função que temos que exercer sem nenhum receio. Da mesma forma que um policial militar ou civil é obrigado a enfrentar diretamente um criminoso.

FOLHA - Essa é a posição do senhor mesmo com o caso do assassinato de um juiz no interior do Estado?
LIMONGI
- Mesmo. Principalmente no interior do Estado os juízes são mais conhecidos, mais visados. Não há necessidade dessa medida extrema de não identificar os juízes.

FOLHA - Qual foi o resultado da consultoria para modernização administrativa feita pela Fundação Getúlio Vargas?
LIMONGI
- Foi um trabalho de 17 meses para modernizar a administração em primeira instância. Esse estudo concluiu que precisa de 180 funcionários por ano para fazer as autuações, que é a montagem do processo. Em segundo grau, reautua-se, põe uma outra capa. A cada recurso, uma nova autuação. Isso não tem cabimento, é só colocar o código de barra e fixar a numeração. É uma rotina tola, desnecessária, supérflua. Isso já está mudando. Também percebemos que de cada três funcionários que nós temos, dois são de atividades meio (administrativa) e um só da atividade fim (que é o processo). Nós temos que fazer o contrário.

FOLHA - E como está o processo de informatização do Judiciário?
LIMONGI
- Nós estamos caminhando bem, mas ainda com um serviço que não é de boa qualidade. Eu não gosto do serviço da Prodesp. Eu contratei a Microsoft para prestar serviços para o tribunal. Mas também não quero afastar a Prodesp de uma vez. É conveniente que continuem com a gente, até por questões técnicas, pois já sabem como funcionam o sistema do tribunal.

FOLHA - Como o senhor avalia a crítica de que o Poder Judiciário é responsável pela superlotação de presídios, pois os juízes não apreciam os pedidos de progressão de pena?
LIMONGI
- Isso é uma matéria jurisdicional, há realmente certo rigor. Os juízes criminais são mesmo rigorosos, levando em conta até mesmo o clamor da população. Acho que existem razões ponderáveis para não conceder benefícios. Pessoalmente, eu penso que a prisão só deve ser decretada nos casos onde há violência física. Um crime como estelionato não há necessidade de impor pena privativa de liberdade. Uma pena alternativa parece-me suficiente. Acho internar [um adolescente] ou prender são medidas que só devem ser tomadas em último caso, porque nem os estabelecimentos para adolescentes nem as prisões educam. Pelo contrário, tornam o indivíduo mais perigoso. O ambiente é deletério e o indivíduo sai muito mais duro. Sai endurecido porque é desrespeitado, seus direitos são desrespeitados. O Estado [o Executivo] não capacita seus funcionários e é preciso rever essa filosofia. É preciso pensar em respeitar todos esses direitos e educar quem está nesses regimes. Quem é preso provisório não deveria ficar com quem é condenado, seria caso de separá-los. Mas o Estado não consegue fazer isso, e não faz.

FOLHA - O senhor acredita que a pena alternativa é a única forma de evitar a superlotação nas cadeias?
LIMONGI
- É mais que isso. É evitar a superlotação, o endurecimento do preso e a especialização na prática de crimes.

FOLHA - Mas quando o senhor fala em direito dos presos, também não é um direito que o processo de um condenado seja revisto e, se puder, que ele seja solto?
LIMONGI
- Mas eu acho que ele tem esse direito. Tudo isso tem que ser respeitado. Agora, se nós temos visões mais duras, se nós temos juízes que tenham outra visão, não se pode fazer muita coisa. É preciso que haja essa compreensão geral de que o endurecimento da lei penal, colocar presos na cadeia, jogá-los na cadeia, não vai resolver. Como não resolveu. Uma prova é essa: não resolveu até hoje. Os juízes sempre foram rigorosos, e não adianta falar que nossa Justiça não pune. Pune sim. Eu tenho preso aqui em São Paulo dois Morumbis cheios. São quase 150 mil presos no Estado de São Paulo.

FOLHA - Como presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, o senhor não teria como orientar os juízes, ou eles têm total autonomia para exigir, inclusive, documentos e exames para soltar um preso?
LIMONGI
- Mas eu não posso ferir a autonomia [dos juízes]. A jurisdição é sagrada. Nem o Judiciário, nem o Legislativo, nem o Executivo podem ferir a independência do juiz no julgamento de uma ação.

FOLHA - O senhor acredita que o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) é um regime que se "assemelha à masmorra da Idade Média", como definiu a 1ª Câmara Criminal?
LIMONGI
- Eu não gosto do RDD. Não vejo com bons olhos ou com simpatia o RDD. É um castigo que se impõe em razão de falta grave cometida no cumprimento de uma pena. Agora, às vezes, é necessário, porque também temos criminosos de alta periculosidade e eles precisam ser segregados do convívio com outras pessoas. Mas isso não pode ser por 360 dias. Acho que um isolamento por esse prazo é uma verdadeira crueldade. O prazo máximo de 90 dias eu até posso admitir.

FOLHA - E o senhor também considera o RDD inconstitucional?
LIMONGI
- No meu modo de ver é inconstitucional por ser cruel. Sinceramente eu não gosto do RDD. Não acho que o Estado possa descer ao próprio nível de um criminoso.

FOLHA - Mas então o que se deve fazer para controlar presos que de dentro das cadeias continuam comandando o crime?
LIMONGI
- Mas o que a polícia tem que fazer é agir sempre com inteligência, no sentido técnico da palavra. Deve ter os meios necessários de investigação para prevenir que isso aconteça. Isso é obrigação da polícia, e isso é possível. Claro que depende de recursos técnicos, de recursos humanos, de capacitação dos nossos policiais.

FOLHA - O senhor acha que a polícia de São Paulo está mal aparelhada?
LIMONGI
- Acho que sim. Eu não vejo a polícia com capacidade para enfrentar o crime organizado. Acho que precisa de mais investimentos nas polícias militar e civil. Tanto uma quanto outra não tem a devida estrutura.

FOLHA - O que aconteceu com o Estado de São Paulo nesse setor?
LIMONGI
- Aconteceu que por décadas todo esse sistema prisional foi relegado para um plano secundário. Agora todos nós sofremos as conseqüências dessa desídia do Poder Executivo. Não há um culpado, todos são responsáveis e a sociedade também. É preciso compreender que os presos têm os seus direitos, que as pessoas necessitam de educação, moradia, trabalho. Quando o crime começou atingir as classes média e alta, aí então acordamos para a existência do crime. E agora é tarde e precisamos resgatar toda a nossa culpa. Não só a "elite branca", da sociedade inteira.


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