São Paulo, terça-feira, 18 de setembro de 2007

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RUBEM ALVES

Nunca te vi, sempre te amei... (2)


Haviam cumprido um mês de prisão por invadir um lugar onde estavam silos atômicos. Decidiram fazer tudo de novo


LADON SHEATS FORA um cidadão norte-americano tradicional. Foi membro do SAC (Strategic Air Command), a sinistra organização da força aérea norte-americana que controlava os bombardeiros e mísseis atômicos a serem lançados contra a União Soviética. Fora do SAC, chegou a ser vice-presidente de marketing da IBM.
Mas de repente seus olhos se abriram e ele tomou consciência da monstruosidade daquela máquina de morte. Fez então aquilo que muitos místicos loucos já haviam feito -Buda, Jesus, São Francisco. Deixou tudo, demitiu-se da IBM, vendeu o que possuía e juntou-se a um grupo de pessoas que haviam escolhido uma estranha forma para exprimir suas convicções espirituais: invadiam pacificamente as instalações nucleares onde se guardavam os mísseis com bombas atômicas, sabendo que isso as levaria à prisão. Invadiam para serem presos.
Era o seu jeito de tornar pública a sua repulsa àquela loucura. Tivemos, então, uma longa correspondência. Vou transcrever alguns trechos de suas cartas:

 

Eles haviam acabado de cumprir um mês de prisão por haverem invadido um lugar onde estavam os silos atômicos, próximo à fronteira do Canadá. Saídos da prisão, resolveram fazer tudo de novo. A primeira pena fora muito branda... Aí ele me contou o que fizeram enquanto se preparavam para a segunda invasão:
"No fim de semana, nós nos entregamos a uma farra -salada de aspargos e espinafres frescos, pizza, cerveja etc. e longas caminhadas na frescura da primavera. A madrugada do dia 27 foi fantástica. Estávamos tão agradecidos por poder voltar ao lugar dos mísseis, (...) tão próximo a uma reserva de vida animal onde abundavam garças azuis, gansos canadenses, veados e miríades de criaturas da terra e do céu. Ficamos então de pé sobre as tampas de concreto que cobriam os mísseis, (...) cantando, lendo as sagradas escrituras e textos do seu livro ("Creio na Ressurreição do Corpo"), que um casal havia descoberto durante seu último período de prisão. Os seus pensamentos alimentaram nossos espíritos, Rubem. Você estava lá conosco. Pensando na sua imagem do corpo como uma pipa e cantando um hino -foi assim que "pulamos o muro", em comunhão com os "quero-quero" que voavam livres entrando e saindo do lugar proibido onde estavam os mísseis. Os seus pios soaram como se fossem ecos à nostalgia que havia em nossos corações..."

 

Por essa segunda transgressão receberam uma pena de seis meses. Ao fim dos seis meses, ele me escreveu:
20 de novembro, 1986: "Rubem, numa questão de poucas horas, minha jornada me levará para além dessas grades... Para uma noite de inverno, quando eu alegremente poderei sorrir para as estrelas pela primeira vez desde maio. Irei de ônibus para o Texas para a celebração dos 78 anos de vida do meu pai. (...) Após o Texas, tudo é incerto. Pode ser que eu vá para Pittsburgh para ajudar num abrigo para os sem-teto... Ou para um mosteiro no alto das montanhas Rochosas para me alimentar de silêncio e solidão. Qualquer que seja o meu caminho, a música é a mesma. Como disse o poeta russo Y. Yevtushenko, "não é possível não dançar". Rubem, você tem planos de vir a esse país em 1987? Dou risadas só de pensar que os nossos caminhos poderão se encontrar..."


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