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São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Censura e punição: realidades inconfundíveis

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Na série de comentários sobre a Constituição que estou desenvolvendo neste mês, trato hoje da liberdade de comunicação. Retomo a decisão judicial que tirou do ar o programa de Gugu Liberato, porquanto toda a sociedade tem interesse em questionar a censura, pois isso diz respeito diretamente ao exercício dos direitos de cada cidadão, que caracterizaram mais do que tudo a Carta de 1988. O vocábulo "censura" tem, no linguajar comum, significados diversos, correspondendo a uma forma de restrição ao comportamento de alguém. Nos meios de comunicação, é ato de autoridade que lhes impõe, permite ou proíbe a transmissão de informações e comentários, segundo os desígnios do poder. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, com a dupla autoridade de seu cargo e de sua condição de qualificado lidador do Direito, disse bem: a proibição a priori é censura e, como tal, incompatível com a Constituição.
No que aqui nos interessa, a forma de controle dos meios de comunicação pela autoridade pública, seja qual for o Poder a que esta pertença, tem sempre sua natureza impeditiva, porquanto interfere na liberdade de comunicar antes que esta se concretize. Nos tempos da ditadura militar, a interferência se fazia por censores oficiais, postos nas Redações ou até por simples telefonemas às emissoras, proibindo-as de divulgar matérias consideradas contrárias ao interesse do poder dominante.
A história da censura, na acepção aqui examinada, confirmada nos três lustros de vida da Constituição, indica permanentemente o mesmo tipo de comportamento. Num certo momento, a autoridade pública, dizendo agir em nome da lei, interrompe o fluxo da obra artística ou jornalística entre a fonte emissora (o jornal, a revista, a estação de rádio ou televisão) e o público.
Para melhor compreender a definição de censura, no caso do programa proibido, é preciso distinguir com absoluta clareza uma situação da outra. A luta contra a censura é a defesa da prática democrática e do direito fundamental de todos os cidadãos, retratado no inciso IX do artigo 5º e no artigo 220 da Constituição, assecuratórios da plena liberdade de manifestação. Outra coisa é a verificação de condutas criticáveis por desrespeitarem os bons costumes, estimularem a delinquência, infringirem ou não as leis vigentes. Há que constatar se constituíram infrações administrativas, legais ou mesmo criminais. O grau da culpa será avaliado em face da conduta apurada de cada um deles.
As duas situações não se confundem. A Constituição situa a diferença com clareza. Se princípios éticos ou relativos aos valores protegidos, por qualquer modo, são desrespeitados, a lei tem mecanismos próprios para a punição. Desenvolvem-se necessariamente através de outros atos da autoridade, destinados a apurar e a punir. Proibir o programa posterior, cujo conteúdo se ignorava, aludindo a defeitos do programa anterior, é censura. E, não obstante as respostas dos juristas contra a censura sejam vigorosas, como já fez o ministro da Justiça, nenhuma delas foi melhor que a do escritor francês Gustave Flaubert, escrita em 1852: "A censura, seja qual for, parece-me uma monstruosidade, algo pior que o homicídio: o atentado contra o pensamento é um crime de lesa-alma". Os constituintes de 1988 certamente foram inspirados pela mesma convicção.


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