São Paulo, domingo, 18 de outubro de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
Doença de médico é contagiosa

O presidente da Associação Paulista de Medicina, Eleuses Vieira, revela ser disseminado o uso de calmantes entre médicos -especialmente entre os mais jovens. "Não temos estatísticas precisas, mas sabemos, por vivência, que é uma prática rotineira", diz.
Especialista em doenças do trabalho, José Erivalder Guimarães explica os calmantes pelas crises agudas de estresse, afetando o desempenho profissional.
O estresse faz o médico ver o paciente como uma fonte de transtornos e aborrecimentos, tratando-o com irritabilidade. Corre, portanto, mais risco de erro.
Associado à irritabilidade e a sintomas de depressão, aparece não só o calmante, mas também, com certa frequência, abuso de álcool e drogas.
"Vida de cão", comenta Erivalder que, além de especialista em doenças profissionais, é presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo.

Com seu dia comemorado hoje, o médico é cercado por uma auréola romântica pela sociedade.
Está nas suas mãos a mais preciosa das riquezas -a vida. O que lhe dá um toque divino.
Sua rotina, porém, é desconhecida. Nem mesmo a maioria dos alunos que sonham com o diploma de medicina está informada exatamente sobre o que vai enfrentar.
O investimento é alto: nenhum curso exige tanto. São seis anos de graduação e, no mínimo, mais dois de especialização.
Logo descobrem o jogo bruto. Psiquiatras da Universidade de São Paulo detectaram alto consumo de drogas e bebidas entre estudantes dos últimos anos do curso.
"É muita pressão, especialmente por causa da combinação de estudos e plantão", afirma o psiquiatra Arthur Guerra, responsável pela investigação dos hábitos de estudantes de medicina.
"Tem muita ilusão, o charme de andar vestido de branco e ser chamado por todos de doutor", assegura Eleuses.

Os levantamentos realizados por sindicatos e associações indicam que mais de 80% dos médicos têm pelo menos três empregos; em geral, o consultório, serviço público e hospital privado.
Em parceria com o Conselho Federal de Medicina, a Fundação Oswaldo Cruz aponta uma média salarial abaixo dos R$ 2.000 mensais.
Peguemos o caso da região da Grande São Paulo, onde a média salarial se aproxima dos R$ 4.500 para quem exerce os três empregos.
Para chegar a esse valor o profissional deve trabalhar 44 horas semanais nos hospitais públicos e privados. Misture com os estressantes plantões.
Joguem-se, aí, mais 20 horas no consultório. Temos, então, 66 horas semanais.
Vai, assim, ralar mais de 12 horas diárias.

Num hospital público, vê-se cercado de gigantescas demandas e escassos recursos.
Não raro, ele tem de escolher quem deve atender; o que significa quem vai morrer.
Detalhe nada desprezível em São Paulo: de um emprego a outro, o devastador trânsito.
Se em São Paulo sair para diversão já é difícil, enfrentando o trânsito parado e ameaça de assalto, imagine então se o destino final for um hospital, onde o mantra é a queixa de dor.
Um dos candidatos preferidos a doenças coronarianas (abaixo apenas de nós, jornalistas), o médico é, por definição, alguém que vive sob intensa pressão.
É obrigado a lidar com seres humanos em situação limite, carrega o peso de uma decisão errada provocar estragos definitivos.

Baixa remuneração e trabalho em excesso fazem dessa pressão não apenas um óbvio risco aos médicos -mas contagia seus pacientes, eventuais vítimas da pressa.
Até porque, com a falta de tempo, dedicam-se menos a estudos, perdendo o passo das inovações.
São espantosas as descobertas anunciadas a cada dia, movidas a novas tecnologias de informação e genética, mudando a forma e o conteúdo da medicina.
Sentir-se desatualizado se transforma, assim, em mais uma fonte de pressão.

Impossível passar despercebido nessa coluna o Dia dos Médicos. Apesar do mercantilismo, descaso e conivência corporativa com os erros, todos conhecemos histórias de heroísmo.

PS - Palavra da Associação Paulista de Medicina. Os piores alunos estão encontrando refúgio nos plantões dos prontos-socorros.
Como o dinheiro é pouco e o desgaste é muito, os plantões atraem a mão-de-obra mais desqualificada.
"Esses jovens médicos levam a vida de plantão em plantão para sobreviverem, tornando-se mão de obra barata, interessante ao mercado", afirma Eleuses.
"É nas emergências que deveríamos ter o profissional melhor qualificado, a exemplo de outros países. Mas temos um recém-formado e sem experiência adequada", acrescenta.
Quantos crimes não foram cometidos e permanecem impunes?


E-mail: gdimen@uol.com.br



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