São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

Pleonasmos

Na última terça-feira, a Folha publicou o artigo "Com Perdão do Pleonasmo", escrito pelo desembargador Celso Limongi, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. O insigne magistrado encerrou o texto com estas palavras: "Enfim, falo, com o perdão do pleonasmo, de uma Justiça realmente justa".
De início, talvez seja bom lembrar o que é "pleonasmo": "Redundância de termos no âmbito das palavras, mas de emprego legítimo em certos casos, pois confere maior vigor ao que está sendo expresso" ("Houaiss"); "Redundância de termos que em certos casos têm emprego legítimo, para conferir à expressão mais vigor, ou clareza" ("Aurélio").
Pois é aí que mora o perigo. Como definir o que é "legítimo" nesse caso? Construções como "subir para cima" ou "entrar para dentro" são tidas como pleonásticas, mas basta um "lá" ("Subir lá para cima", "Entrar lá para dentro") para que se abra a discussão: é pleonasmo ou não é?
Bem, o fato é que construções como "subir para cima", "entrar para dentro" ou "descer para baixo" parecem mesmo não ter salvação. Daí para a frente, a questão pode tornar-se nebulosa, mas, com um pouco de bom senso e zero de radicalismo, consegue-se chegar ao xis do problema, que é compreender o que leva o falante a empregar certos pleonasmos.
Tomemos como exemplo o caso da expressão "bela caligrafia", que muitos ainda consideram exemplo de pleonasmo que se deve evitar. Quem é que sabe que, ao pé da letra, "caligrafia" significa "bela grafia"? Quem é que sabe que o elemento grego "cali-" (o mesmo de "calidoscópio", que possui a variante "caleidoscópio", à qual é preferível) significa "belo"? E quem é que hoje usa "caligrafia" com o sentido literal?
Parece mais sensato aceitar "bela caligrafia" como um dos casos de pleonasmos consagrados pela perda da noção do sentido original, o que também se vê, por exemplo, em "abismo sem fundo" (literalmente, "abismo", que vem do grego, significa "sem fundo") ou no pronome oblíquo "comigo" (soma da preposição "com" com a forma antiga "migo", que, por sua vez, vem da forma latina "mécum", em que já se encontram o pronome e a preposição).
Convém lembrar também casos como o deste exemplo de Viana Moog, citado pelo professor Domingos P. Cegalla em seu "Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa": "Sorriu para Holanda um sorriso ainda marcado de pavor". O que legitima o pleonasmo de "Sorriu (...) um sorriso" é a expressão adjetiva "ainda marcado de pavor". De fato, ninguém diria simplesmente "Ela sorriu um sorriso" ou "Elas vivem uma vida", mas é perfeitamente possível que se diga "Elas vivem uma vida nababesca", por exemplo.
E o texto do nosso desembargador? Humanista e idealista que é, Limongi certamente acredita que haja pleonasmo em "Justiça realmente justa". Essencialmente, há mesmo. Mas, como sei que ele conhece a vida, ouso dizer a Sua Excelência que os fatos se encarregam de mostrar que nem sempre a Justiça é justa, de modo que...
Por fim, deixo uma pergunta: não fui pleonástico quando, no início do texto, caracterizei Limongi como desembargador e presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo? Para ser presidente do Tribunal de Justiça, não é preciso ser desembargador? É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br


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