São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2010

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ENTREVISTA DA 2ª
ALEJANDRO ARAVENA


É preciso levar o DNA da classe média para a favela

ARQUITETO PREMIADO EM VENEZA FAZ PROJETO PARA PARAISÓPOLIS E DIZ QUE É MELHOR FAZER MEIA CASA BOA DO QUE UMA CASA RUIM

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A SANTIAGO

O arquiteto chileno Alejandro Aravena criou uma equação para atacar o que considera o ponto mais frágil dos projetos de arquitetura social: a qualidade. "É melhor fazer meia casa boa do que uma casa ruim", disse à Folha. O DNA de classe média fará, segundo ele, que a habitação vire investimento e deixe de ser gasto social.
Aravena, 44, dirige o Elemental, grupo que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza de 2008 e fará o primeiro projeto no Brasil, em Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo. As obras dos 120 apartamentos devem começar no próximo mês.
O percentual de autoconstrução caiu de 50% para cerca de 10% por causa de lei brasileira. Se fosse maior do que 50 m2, o apartamento não seria considerado habitação de interesse social e perderia os subsídios, o que inviabilizaria o projeto.
Aravena concilia projetos de moradia social com os de vanguarda. Tem obras nos EUA, na Alemanha e na China e é apontado como um dos grandes criadores da arquitetura contemporânea. Em seu escritório em Santiago ele critica o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo Lula, por não se valer da capacidade das famílias de construir por conta própria.

 

Folha - Como um arquiteto de vanguarda descobre que precisava fazer habitação social?
Alejandro Aravena -
Foi por um sentido de vergonha própria. Eu havia sido convidado para dar aulas na Universidade Harvard e estava numa mesa com o ministro chileno de Habitações, um engenheiro e um advogado. Todos começaram a falar de habitação social e eu não tinha nada para dizer.

A maioria dos arquitetos deu respostas arquitetônicas ao problema da habitação social. Por que você entrou no campo econômico?
Isso é muito importante, esse é o ponto. A minha resposta é uma crítica à arquitetura, principalmente a que se desenvolveu na última década. A arquitetura só se ocupa de problemas que interessam a outros arquitetos, que é o uso estratégico da forma.
Entre os anos 1960 e 1970, houve uma bifurcação e alguns arquitetos vivem uma espécie de foro criativo, como se dissessem: "Me deixem ser gênio, mas não me peçam para ter relação com o mundo real". Esse caminho vai dar numa certa arquitetura de impacto. Outro caminho foi o dos problemas inespecíficos: pobreza, segregação, desenvolvimento, violência. Esse discurso levou muitos arquitetos a tratar desses temas duros, mas abandonaram o projeto. Em vez de projetar, faziam "papers". O desafio, a partir do ano 2000, foi cruzar conhecimento específico com problemas inespecíficos. Nos projetos do Elemental, todo mundo pode opinar: o economista, o político e a senhora que não sabe ler.

Quando você teve a ideia de que o imóvel deve valorizar?
Para uma família pobre, o subsídio a uma casa significa a ajuda mais importante que ela vai receber do Estado de uma só vez. Como o solo é um recurso escasso, há valorização. A casa precisa ser um investimento, não gasto social. Se projetarmos essa casa para aumentar de valor com o tempo, ela vai poder pegar mais dinheiro no banco quando precisar. Foi o que ocorreu com a maioria dos projetos do Elemental. As casas valem o dobro do que quando foram construídas.

Quando lhe ocorreu a ideia de que meia casa boa era melhor do que uma casa ruim?
A política previa 40 m² para sala, cozinha, banheiro e dois dormitórios. Tudo ruim. Foi aí que surgiu a ideia central do Elemental: é melhor fazer meia casa boa do que uma casa ruim. Mas se você olha 40 m² com metade de uma casa boa, a pergunta é: que metade fazemos? A resposta foi: a metade que uma família nunca vai fazer bem. Os primeiros 40 m² têm de ter banheiro, cozinha, muro e escada. Porque é pouco provável que uma família saiba fazer bem um banheiro. Para fazer isso, os moradores tinham de abrir mão de algo.

Era uma negociação?
Sim. Sugerimos que a casa fosse entregue sem pintura. Houve 100% de aprovação. A pintura é acessória. Porém, pedimos coisas mais extremas. Pedimos às famílias que os dormitórios não tivessem acabamento em troca de um banheiro de classe média.
Também houve 100% de aprovação. O projeto da Quinta Monroy era tão inovador que tivemos que fazê-lo contra a lei. Foi o momento mais difícil do projeto. O ponto era ter não mais coisas, mas melhores coisas. Fazer metade de uma casa boa, em vez de uma casa pequena, foi de longe a mais importante reconceitualização.

A ideia é levar para as favelas um DNA de classe média?
Sim. É preciso levar o DNA da classe média para a favela para que a habitação se transforme em investimento e deixe de ser gasto social. O DNA de classe média é uma das cinco condições dos projetos do Elemental: 1) localização; 2) projeto do conjunto urbano; 3) 50% de frente para o lote urbano; 4) estrutura para os 80 metros finais, não para os 40 metros iniciais; 5) DNA de classe média no banheiro, cozinha e escada.

O governo brasileiro criou um dos maiores programas habitacionais do mundo, o Minha Casa, Minha Vida, que repete o conceito de conjuntos longe das áreas mais valorizadas. Isso faz sentido hoje?
Não. As evidências mostram que há uma capacidade de investimento das próprias pessoas. São capazes de construir 30, 40 m² sem qualquer tipo de apoio estatal. Se essa capacidade informal existe, não seria melhor usá-la nas políticas públicas? Por que não fazer só a parte que as famílias não farão bem?

Muitos arquitetos brasileiros criticaram o fato de Herzog e De Meuron terem sido convidados para projetar um teatro de dança em São Paulo.
Isso é pura insegurança. O Brasil tem uma cultura que pode se dar ao luxo de não olhar para o resto do mundo. É como a Índia. O Brasil mandou nos anos 1970 e 1980 um contingente enorme de gente para estudar fora. E os anos 1970 foram o último momento poderoso da arquitetura brasileira. Os termos com que se discute arquitetura no Brasil são de 20, 25 anos atrás.

A hipótese de isolamento está correta?
É um cruzamento de isolamento com autocomplacência. Não consigo entender como, em milhões e milhões de metros de arquitetura imobiliária e com o clima que o Brasil tem, tudo é fechado. A arquitetura do Brasil parece o pós-modernismo italiano dos anos 1980. Parece que os arquitetos sonham com o clima mais frio da Europa.

O modernismo brasileiro parece que nunca se repensou.
As reinvenções culturais passam por matar os pais. No Brasil, porém, não se pode matar os pais. São os mesmos pais de sempre.

FOLHA.com
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folha.com.br/ct768241



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