São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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GILBERTO DIMENSTEIN
O vírus da ignorância


Clientes que frequentam casas de prostituição masculina pagam uma taxa extra se a relação sexual dispensar a camisinha, num perverso seguro de vida -alguns aceitam a proposta.
Ativistas gays relatam que esse tipo de desatino faz parte de uma mudança de comportamento diante do vírus HIV provocada pelo coquetel.
Com os novos remédios, a Aids já não ocupa tanto destaque no noticiário e diminuiu a percepção de risco. Não aparecem, como antes, aquelas figuras cadavéricas, muitos sobrevivem.
Voltam até mesmo os chamados "dark rooms", ambientes escuros instalados em saunas, danceterias ou bares, onde não se vê e nem se conhece o parceiro; sexo às cegas.
A irresponsabilidade é apenas a outra face da desinformação -o que foi reforçado pela divulgação, semana passada, de que o Brasil teria mais de 500 mil infectados.
O ponto: a deseducação é, de longe, uma das maiores ameaças à saúde pública.

Repete-se aqui o efeito São Francisco, nos Estados Unidos. Jovens que não viram de perto o pânico da Aids não se sentem tão acuados.
Sinais de alerta estão piscando não apenas na percepção subjetiva dos médicos brasileiros, assistindo ao relaxamento diante da doença.
Mais importante, delineando uma tendência, aparecem os primeiros números que apontam o aumento da contaminação, ainda não absorvidos pelas estatísticas nacionais.
Um centro de referência como a Casa da Aids, em São Paulo, registra aumento no número de soropositivos; assim como as investigações que acompanham periodicamente grupos de homossexuais.

É espantoso o grau de irresponsabilidade -o que, em parte, mostra o fracasso do poder público e, vamos reconhecer, dos meios de comunicação.
Uma pesquisa ainda incompleta, prevista para ser divulgada no final do ano, realizada pelo Hospital das Clínicas, em São Paulo, revela que não chega a 20% o número de jovens que usam sempre, sem exceção, camisinha.
Há indicações de disseminação na juventude de vários tipos de doença sexualmente transmissível. O que aumenta a responsabilidade dos pais e das escolas.
A camisinha não é barata e, pior, não é acessível em locais frequentados por jovens.

O infectologista Caio Rosenthal, do Hospital Emílio Ribas, se mostra especialmente espantado com a dificuldade de tratar os drogados -fontes de transmissão do HIV.
"Eles parecem que não se importam. São rebeldes, tomam a medicação e depois param, o que dá mais força ainda ao vírus", afirma.
O professor David Lewy, da Universidade Federal de São Paulo, nota como é difícil os doentes pobres com Aids seguirem o tratamento. "Eles simplesmente não conseguem se programar para tomar os diversos remédios na hora certa", diz.
O resultado é que a doença muda de perfil, atingindo os mais jovens e, em particular, mulheres pobres.

Quando sabemos que existem, no mínimo, 500 mil pessoas infectadas e se relaxa na prevenção, temos um bom motivo para que volte o pânico no poder público e nos meios de comunicação.
O vírus da ignorância não se cura com remédio, mas com palavras.

PS - Um dos médicos que alertam para o recrudescimento do HIV é o infectologista David Uip, diretor da Casa da Aids, onde são atendidas por mês 2.000 pessoas.
Ele sustenta que o país deve ensinar os homens a preservar as mulheres. Numa idéia que provoca debate, ele aposta que, "mais cedo ou mais tarde", vão descobrir ser menos provável um homem heterossexual, que não se exponha ao risco de drogas injetáveis, contrair o vírus HIV.
À medida em que é menos provável, o homem diminui a percepção de risco e expõe suas parcerias.


E-mail: gdimen@uol.com.br


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