|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ÉTICA NA PROFISSÃO
Para Octavio Souza, proposta em debate nos conselhos regionais inviabiliza a conquista da confiança do paciente
Psicólogo ataca quebra de sigilo profissional
MARIANA VIVEIROS
CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL
Para o psicólogo Octavio Souza,
a defesa da quebra obrigatória do
sigilo profissional dos psicólogos
em caso de pacientes que cometeram ou sofreram violência mistura uma postura de Bush com Babá
-referência ao conservadorismo
do presidente norte-americano e
ao radicalismo dos chamados xiitas do PT.
Ele avalia que a proposta -que
está em debate nos conselhos regionais de psicologia- coloca em
xeque as bases da psicoterapia:
tempo, ambiente de confiança,
construção da responsabilização
do paciente e reflexão por parte
do profissional.
Para Souza, a proposta de tornar a quebra de sigilo obrigatória,
por meio de uma mudança no
Código de Ética dos profissionais,
é corporativista, de um grupo que
desconhece que a relação entre o
psicólogo e o paciente é um "encontro de delicadezas".
Ele diz que, se a mudança passar, será letra morta, principalmente nos consultórios particulares, e acabará afetando negativamente os mais pobres, que fazem
uso do serviço público.
Folha - O sr. é contra ou a favor da
obrigatoriedade, entre os psicólogos, de quebra do sigilo profissional quando o paciente é autor ou
vítima de violência?
Octavio Souza - Eu me posiciono
bem contra, assim como várias
pessoas têm se posicionado. Profundamente contra.
Folha - Por quê?
Souza - Têm muitos aspectos
que a gente pode pegar. O principal deles é o quanto isso afeta a relação psicólogo-paciente. O quanto isso perturba toda a produção
do ambiente de intimidade e,
principalmente, de reflexão.
Folha - Como pode perturbar?
Souza - Todos os tratamentos de
clínica psicológica que não são
prescritivos, quer seja psicanálise,
quer seja psicodrama, construtivista, em todos eles, o que se procura obter? Procura-se obter um
ambiente de conversa e reflexão.
As pessoas chegam ao consultório como? Elas chegam muitas vezes angustiadas, ansiosas e pedindo decisões, resoluções, soluções
mágicas. Em geral, elas estão assoberbadas por angústias, por
conflitos e por situações que as
impedem de pensar.
E o consultório do psicólogo clínico é justamente isso. É a criação
de um espaço de reflexão, onde o
pensamento possa ocorrer. É fundamental o tempo na prática clínica, o tempo de amadurecimento. Uma das perspectivas mais
importantes do tratamento clínico é a da responsabilização das
pessoas pelas coisas que lhes
acontecem, pelos seus desejos,
tanto pelo que ela pensa como pelo que os outros impõem a ela ou
fazem com ela.
Então, muitas vezes, nós temos
pessoas enfraquecidas diante da
realidade, dos outros, diante das
autoridades. A perspectiva é que
essas pessoas possam se responsabilizar pelos seus destinos, pelas
suas vidas.
Folha - Quer dizer, levá-las a decidir se querem denunciar ou confessar uma violência.
Souza -Uma medida como essa,
prescritiva, absoluta, imposta sob
ameaças de penas, exclusões e
multas, retira do psicólogo o encargo de trabalhar com a angústia
de situações que os seus analisados geram. Eu, diante de uma situação de violência, não preciso
me perguntar o que fazer. O Código de Ética já vai me dizer: você
vai se descarregar. Essa medida
vai me desencarregar das situações e transferi-las para órgãos
superiores.
Folha - Isso seria compactuar com
a idéia de que o trabalho com as
leis do inconsciente é ineficaz?
Souza - A gente não precisa nem
pensar em leis do inconsciente,
mas na capacidade de reflexão e
de mudança das pessoas. Porque
a decisão coloca o paciente que vitimiza ou é vitimizado no seu lugar, o transforma ou em vítima ou
em réu, não permite nenhum espaço de reflexão e isenta o psicólogo também de pensar sobre o
que fazer, como encaminhar as
conversas e o pensamento.
Folha - A quebra do sigilo atinge
as bases fundamentais, coloca em
xeque a própria psicoterapia?
Souza - Sem dúvida alguma.
Não só eu acho isso, como vários
psicólogos acham isso, como a
presidente eleita [do Conselho Federal de Psicologia] acha isso. Se a
gente for ler o que ela escreve, ela
tem essa idéia de que isso contraria uma prática clínica, perturba
uma prática estabelecida.
Folha - E, na sua avaliação, por
que essa idéia ganhou tanta força?
Souza - Lendo as reportagens
sobre o assunto, o que me impressionou muito foi a antipatia, a
aversão e o repúdio dos que preconizam essas mudanças em relação às práticas clínicas.
Folha - Essa é uma tendência?
Souza - Não. É uma decisão dessa direção [do conselho] que foi
levada a efeito em congressos sobre ética onde as pessoas que estavam reunidas certamente não representam a maioria dos psicólogos. Duvido muito que psicólogos
com práticas clínicas, nas quais a
questão do tempo, da duração e
da continuidade do tratamento
são importantes, tenham votado
nessa alteração, tenham pensado
em mudar o código.
Folha - Mas se diz que dificilmente a proposta de mudança seria rejeitada. É isso o que o sr. sente?
Souza - Eu não vivo próximo
dos conselhos nacional e regionais. Certamente a aprovação disso não vai ser por um referendo.
Eles não têm a perspectiva de fazer essas mudanças num plebiscito. Se tivessem, tenho certeza de
que não mudaria.
É de espantar muito os argumentos que são levantados. Um
deles é que os psicólogos estão desorientados, que a baderna é geral
e eles não sabem o que fazer, então precisariam do Código de Ética. Mas cada vez mais existe uma
reflexão sobre a violência, existem
instâncias nos hospitais públicos,
na sociedade, que discutem isso.
São criados locais em que essas
questões são pensadas, em que
casos clínicos específicos são trabalhados em termos multidisciplinares. Existe todo um trabalho
de reflexão sobre a violência e de
como encaminhar os casos.
Folha - A quebra do sigilo não
ajudaria a combater a violência?
Souza - De modo algum. As pessoas que seriam passíveis de ser
denunciadas evitariam ser denunciadas. As pessoas que se
queixam da violência seriam submetidas a instâncias oficiais, perderiam o espaço que elas estavam
indo procurar.
Folha - Hoje o psicólogo pode decidir se quebra ou não o sigilo. É comum decidir pela quebra?
Souza- Não, nem um pouco.
Justamente porque se aposta na
multiplicidade dos componentes
de uma sociedade civil. O que é
importante é que se aprenda a lidar com essas questões da violência na interlocução interdisciplinar. Não é curioso, por exemplo,
que o Conselho Federal de Medicina nunca tenha pensado nisso?
Por que isso ocorre com os psicólogos? Não posso ver de outra maneira senão como uma decisão
particular dessa direção. Essa é
uma investida contra uma parte
da clínica que existe entre os psicólogos. Essas pessoas têm aversão e repúdio à própria prática do
consultório clínico individual.
Folha - E o sr. acha que é uma visão pessoal?
Souza - É uma visão. Existem
conflitos dentro das profissões.
Na psicologia mais ainda, pela sua
diversidade. Existem dificuldades
de conversa entre os vários setores da psicologia. Essas pessoas
[dirigentes do Conselho Federal
de Psicologia e do Conselho de
Ética do Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo] são representantes de uma certa psicologia social que não contempla a
questão dos longos tratamentos.
Folha - Ela é dominante?
Souza - Ela está dominante, me
parece. Em vez de procurar um
espaço de reflexão, essas pessoas
buscam retirar de todos -tanto
das classes menos favorecidas como das mais favorecidas- o espaço da reflexão. O que os serviços de psicologia clínica conseguiram nos últimos 20, 30 anos foi
realmente, de uma maneira impressionante, estender os serviços
de psicoterapia a todas as classes,
quer seja em instituições com preços populares, quer seja nos hospitais públicos.
A inserção dos psicólogos em
todos esses lugares é enorme. Em
vez de procurar valorizar essa
aquisição, procura-se transformar todos os psicólogos em funcionários públicos, obrigados a se
reportar a uma instância superior
e a recuar do seu ofício diante de
qualquer caso difícil.
Folha - Nos EUA, houve a quebra
do sigilo em casos de violência. Como a decisão chegou a afetar o trabalho dos psicólogos lá?
Souza - O livro "Os Novos Informantes"["The New Informants"],
de Cristopher Bollas, mostra o
quanto foi prejudicial, o quanto
nos Estados Unidos acontece
uma "desresponsabilização" do
psicólogo por qualquer tensão
que seja criada no consultório.
Se um paciente tem uma fantasia de se suicidar, a primeira coisa
que o psicólogo faz é telefonar para os pais, independentemente de
qualquer pressão da situação, somente por desencargo de responsabilidade. Uma coisa é reportar
para os familiares ou para as instituições médicas competentes que
existe uma pessoa que está querendo fazer algo que pode colocar
sua vida em perigo. Outra coisa é
obrigar os profissionais a, em
qualquer menção, reportar sob
ameaça de receber punições severíssimas e processos rigorosíssimos. É isso o que acontece nos
EUA. Mas não acontece no Canadá, na Austrália nem na Europa.
Folha - E como dimensionar o que
é real se o psicólogo lida muito com
fantasia, delírio?
Souza - A Ana Bock, presidente
eleita do Conselho Federal de Psicologia, diz que é função do psicólogo diferenciar fantasia de realidade. Essa questão, todo mundo
sabe, é muito difícil. Vários psicólogos clínicos e psicanalistas dirão
que não, que ao psicanalista não
cabe fazer essa diferenciação. Eu,
pessoalmente, não concordo. Eu
acho que cabe, sim, fazer a diferenciação, mas ela é muito longa,
exige confiança e tempo.
Folha - Quebrar o sigilo no meio
do processo seria catastrófico?
Souza - Seria. E a questão não é
só essa. Você já ouviu falar de algum item de um código de ética
de uma profissão, no qual um
profissional se veja obrigado a,
antes de qualquer contato com o
cliente, enunciar o Código de Ética da profissão? Só com a polícia
ocorre isso: tudo o que você disser
poderá ser usado contra você.
A dra. Ana Bock diz à Folha que
o paciente deve ser avisado das regras pelo psicólogo. A uma pessoa
que vem singelamente me procurar porque está com dificuldades
com o namorado, vou ter de dizer
que qualquer revelação que ela faça a respeito de violência sofrida
eu vou ter de reportar. Uma pessoa que defende isso não tem a
mínima idéia das nuances e da riqueza do contato entre paciente e
terapeuta. Ela não sabe a delicadeza do encontro, no que ela implica. O encontro paciente/terapeuta
é um encontro de delicadezas e o
conselho está querendo botar decisões urgentes, atitudes drásticas
no meio desse clima.
Folha - Isso deve afastar o paciente do consultório?
Souza -Ou afastar ou transformar completamente e fazer com
que o clima de confiança e intimidade não seja obtido. É claro que
os psicólogos clínicos não obedecerão o Código de Ética [se ele
mudar]. Eu não o obedecerei. Isso
vai ser letra morta. O que vai ocorrer é que o código vai ser obedecido nos serviços públicos, onde o
que está em questão é o emprego.
A elite vai continuar usufruindo
de um regime de exceção.
Folha - A saída é um plebiscito?
Souza - Se quisessem fazer, seria
interessante. Isso é a adoção de
uma política norte-americana por
uma facção de ultra-esquerda do
PT. É uma mistura de Estados
Unidos com a ala xiita do petismo. Foi um compósito de [George] Bush com Babá [deputado federal que foi expulso do PT] que
elaborou essa proposta. Uma
mistura de maluco.
Texto Anterior: Silicone com vida: Técnico esculpe membros perdidos Próximo Texto: Especialista também atua em pesquisa Índice
|