São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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ÉTICA NA PROFISSÃO

Para Octavio Souza, proposta em debate nos conselhos regionais inviabiliza a conquista da confiança do paciente

Psicólogo ataca quebra de sigilo profissional

MARIANA VIVEIROS
CLÁUDIA COLLUCCI

DA REPORTAGEM LOCAL

Para o psicólogo Octavio Souza, a defesa da quebra obrigatória do sigilo profissional dos psicólogos em caso de pacientes que cometeram ou sofreram violência mistura uma postura de Bush com Babá -referência ao conservadorismo do presidente norte-americano e ao radicalismo dos chamados xiitas do PT.
Ele avalia que a proposta -que está em debate nos conselhos regionais de psicologia- coloca em xeque as bases da psicoterapia: tempo, ambiente de confiança, construção da responsabilização do paciente e reflexão por parte do profissional.
Para Souza, a proposta de tornar a quebra de sigilo obrigatória, por meio de uma mudança no Código de Ética dos profissionais, é corporativista, de um grupo que desconhece que a relação entre o psicólogo e o paciente é um "encontro de delicadezas".
Ele diz que, se a mudança passar, será letra morta, principalmente nos consultórios particulares, e acabará afetando negativamente os mais pobres, que fazem uso do serviço público.

Folha - O sr. é contra ou a favor da obrigatoriedade, entre os psicólogos, de quebra do sigilo profissional quando o paciente é autor ou vítima de violência?
Octavio Souza -
Eu me posiciono bem contra, assim como várias pessoas têm se posicionado. Profundamente contra.

Folha - Por quê?
Souza -
Têm muitos aspectos que a gente pode pegar. O principal deles é o quanto isso afeta a relação psicólogo-paciente. O quanto isso perturba toda a produção do ambiente de intimidade e, principalmente, de reflexão.

Folha - Como pode perturbar?
Souza -
Todos os tratamentos de clínica psicológica que não são prescritivos, quer seja psicanálise, quer seja psicodrama, construtivista, em todos eles, o que se procura obter? Procura-se obter um ambiente de conversa e reflexão.
As pessoas chegam ao consultório como? Elas chegam muitas vezes angustiadas, ansiosas e pedindo decisões, resoluções, soluções mágicas. Em geral, elas estão assoberbadas por angústias, por conflitos e por situações que as impedem de pensar.
E o consultório do psicólogo clínico é justamente isso. É a criação de um espaço de reflexão, onde o pensamento possa ocorrer. É fundamental o tempo na prática clínica, o tempo de amadurecimento. Uma das perspectivas mais importantes do tratamento clínico é a da responsabilização das pessoas pelas coisas que lhes acontecem, pelos seus desejos, tanto pelo que ela pensa como pelo que os outros impõem a ela ou fazem com ela.
Então, muitas vezes, nós temos pessoas enfraquecidas diante da realidade, dos outros, diante das autoridades. A perspectiva é que essas pessoas possam se responsabilizar pelos seus destinos, pelas suas vidas.

Folha - Quer dizer, levá-las a decidir se querem denunciar ou confessar uma violência.
Souza -
Uma medida como essa, prescritiva, absoluta, imposta sob ameaças de penas, exclusões e multas, retira do psicólogo o encargo de trabalhar com a angústia de situações que os seus analisados geram. Eu, diante de uma situação de violência, não preciso me perguntar o que fazer. O Código de Ética já vai me dizer: você vai se descarregar. Essa medida vai me desencarregar das situações e transferi-las para órgãos superiores.

Folha - Isso seria compactuar com a idéia de que o trabalho com as leis do inconsciente é ineficaz?
Souza -
A gente não precisa nem pensar em leis do inconsciente, mas na capacidade de reflexão e de mudança das pessoas. Porque a decisão coloca o paciente que vitimiza ou é vitimizado no seu lugar, o transforma ou em vítima ou em réu, não permite nenhum espaço de reflexão e isenta o psicólogo também de pensar sobre o que fazer, como encaminhar as conversas e o pensamento.

Folha - A quebra do sigilo atinge as bases fundamentais, coloca em xeque a própria psicoterapia?
Souza -
Sem dúvida alguma. Não só eu acho isso, como vários psicólogos acham isso, como a presidente eleita [do Conselho Federal de Psicologia] acha isso. Se a gente for ler o que ela escreve, ela tem essa idéia de que isso contraria uma prática clínica, perturba uma prática estabelecida.

Folha - E, na sua avaliação, por que essa idéia ganhou tanta força?
Souza -
Lendo as reportagens sobre o assunto, o que me impressionou muito foi a antipatia, a aversão e o repúdio dos que preconizam essas mudanças em relação às práticas clínicas.

Folha - Essa é uma tendência?
Souza -
Não. É uma decisão dessa direção [do conselho] que foi levada a efeito em congressos sobre ética onde as pessoas que estavam reunidas certamente não representam a maioria dos psicólogos. Duvido muito que psicólogos com práticas clínicas, nas quais a questão do tempo, da duração e da continuidade do tratamento são importantes, tenham votado nessa alteração, tenham pensado em mudar o código.

Folha - Mas se diz que dificilmente a proposta de mudança seria rejeitada. É isso o que o sr. sente?
Souza -
Eu não vivo próximo dos conselhos nacional e regionais. Certamente a aprovação disso não vai ser por um referendo. Eles não têm a perspectiva de fazer essas mudanças num plebiscito. Se tivessem, tenho certeza de que não mudaria.
É de espantar muito os argumentos que são levantados. Um deles é que os psicólogos estão desorientados, que a baderna é geral e eles não sabem o que fazer, então precisariam do Código de Ética. Mas cada vez mais existe uma reflexão sobre a violência, existem instâncias nos hospitais públicos, na sociedade, que discutem isso. São criados locais em que essas questões são pensadas, em que casos clínicos específicos são trabalhados em termos multidisciplinares. Existe todo um trabalho de reflexão sobre a violência e de como encaminhar os casos.

Folha - A quebra do sigilo não ajudaria a combater a violência?
Souza -
De modo algum. As pessoas que seriam passíveis de ser denunciadas evitariam ser denunciadas. As pessoas que se queixam da violência seriam submetidas a instâncias oficiais, perderiam o espaço que elas estavam indo procurar.

Folha - Hoje o psicólogo pode decidir se quebra ou não o sigilo. É comum decidir pela quebra?
Souza-
Não, nem um pouco. Justamente porque se aposta na multiplicidade dos componentes de uma sociedade civil. O que é importante é que se aprenda a lidar com essas questões da violência na interlocução interdisciplinar. Não é curioso, por exemplo, que o Conselho Federal de Medicina nunca tenha pensado nisso? Por que isso ocorre com os psicólogos? Não posso ver de outra maneira senão como uma decisão particular dessa direção. Essa é uma investida contra uma parte da clínica que existe entre os psicólogos. Essas pessoas têm aversão e repúdio à própria prática do consultório clínico individual.

Folha - E o sr. acha que é uma visão pessoal?
Souza -
É uma visão. Existem conflitos dentro das profissões. Na psicologia mais ainda, pela sua diversidade. Existem dificuldades de conversa entre os vários setores da psicologia. Essas pessoas [dirigentes do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho de Ética do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo] são representantes de uma certa psicologia social que não contempla a questão dos longos tratamentos.

Folha - Ela é dominante?
Souza -
Ela está dominante, me parece. Em vez de procurar um espaço de reflexão, essas pessoas buscam retirar de todos -tanto das classes menos favorecidas como das mais favorecidas- o espaço da reflexão. O que os serviços de psicologia clínica conseguiram nos últimos 20, 30 anos foi realmente, de uma maneira impressionante, estender os serviços de psicoterapia a todas as classes, quer seja em instituições com preços populares, quer seja nos hospitais públicos.
A inserção dos psicólogos em todos esses lugares é enorme. Em vez de procurar valorizar essa aquisição, procura-se transformar todos os psicólogos em funcionários públicos, obrigados a se reportar a uma instância superior e a recuar do seu ofício diante de qualquer caso difícil.

Folha - Nos EUA, houve a quebra do sigilo em casos de violência. Como a decisão chegou a afetar o trabalho dos psicólogos lá?
Souza -
O livro "Os Novos Informantes"["The New Informants"], de Cristopher Bollas, mostra o quanto foi prejudicial, o quanto nos Estados Unidos acontece uma "desresponsabilização" do psicólogo por qualquer tensão que seja criada no consultório.
Se um paciente tem uma fantasia de se suicidar, a primeira coisa que o psicólogo faz é telefonar para os pais, independentemente de qualquer pressão da situação, somente por desencargo de responsabilidade. Uma coisa é reportar para os familiares ou para as instituições médicas competentes que existe uma pessoa que está querendo fazer algo que pode colocar sua vida em perigo. Outra coisa é obrigar os profissionais a, em qualquer menção, reportar sob ameaça de receber punições severíssimas e processos rigorosíssimos. É isso o que acontece nos EUA. Mas não acontece no Canadá, na Austrália nem na Europa.

Folha - E como dimensionar o que é real se o psicólogo lida muito com fantasia, delírio?
Souza -
A Ana Bock, presidente eleita do Conselho Federal de Psicologia, diz que é função do psicólogo diferenciar fantasia de realidade. Essa questão, todo mundo sabe, é muito difícil. Vários psicólogos clínicos e psicanalistas dirão que não, que ao psicanalista não cabe fazer essa diferenciação. Eu, pessoalmente, não concordo. Eu acho que cabe, sim, fazer a diferenciação, mas ela é muito longa, exige confiança e tempo.

Folha - Quebrar o sigilo no meio do processo seria catastrófico?
Souza -
Seria. E a questão não é só essa. Você já ouviu falar de algum item de um código de ética de uma profissão, no qual um profissional se veja obrigado a, antes de qualquer contato com o cliente, enunciar o Código de Ética da profissão? Só com a polícia ocorre isso: tudo o que você disser poderá ser usado contra você.
A dra. Ana Bock diz à Folha que o paciente deve ser avisado das regras pelo psicólogo. A uma pessoa que vem singelamente me procurar porque está com dificuldades com o namorado, vou ter de dizer que qualquer revelação que ela faça a respeito de violência sofrida eu vou ter de reportar. Uma pessoa que defende isso não tem a mínima idéia das nuances e da riqueza do contato entre paciente e terapeuta. Ela não sabe a delicadeza do encontro, no que ela implica. O encontro paciente/terapeuta é um encontro de delicadezas e o conselho está querendo botar decisões urgentes, atitudes drásticas no meio desse clima.

Folha - Isso deve afastar o paciente do consultório?
Souza -
Ou afastar ou transformar completamente e fazer com que o clima de confiança e intimidade não seja obtido. É claro que os psicólogos clínicos não obedecerão o Código de Ética [se ele mudar]. Eu não o obedecerei. Isso vai ser letra morta. O que vai ocorrer é que o código vai ser obedecido nos serviços públicos, onde o que está em questão é o emprego. A elite vai continuar usufruindo de um regime de exceção.

Folha - A saída é um plebiscito?
Souza -
Se quisessem fazer, seria interessante. Isso é a adoção de uma política norte-americana por uma facção de ultra-esquerda do PT. É uma mistura de Estados Unidos com a ala xiita do petismo. Foi um compósito de [George] Bush com Babá [deputado federal que foi expulso do PT] que elaborou essa proposta. Uma mistura de maluco.


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