São Paulo, quinta, 20 de fevereiro de 1997.

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OPINIÃO
A Aids de Pinóquio

MÁRIO SCHEFFER

O desenho virou filme em cartaz, mas o clássico de Carlo Collodi é o mesmo, a história da fantasia que ganha vida, da inverdade que encanta. Quando o assunto é Aids, às vezes os meios de comunicação dão uma de Gepeto, esculpem a mentira.
No cinema, é um robô ingênuo, animado com efeitos especiais. Nos jornais é mais perversa, aparece em forma de apuração descuidada, resultado de assessoria de imprensa competente e marketing sedutor da indústria farmacêutica, dos programas oficiais de Aids e até de médicos vaidosos, todos especialistas na arte da enganação.
``Take'' um: TVs e jornais brasileiros descobrem a ``cura da Aids'' depois da cobertura da Conferência de Vancouver, Canadá, no ano passado. A combinação promissora de antivirais é batizada de ``coquetel'', nome de bebida doce preparada com álcool e frutas ou de festa agradável no fim de tarde.
Soropositivos hipotecam sonhos, vendem bens, correm em massa aos serviços de saúde atrás dos remédios salvadores de última geração, absurdamente caros. Pessoas potencialmente expostas ao risco de contaminação abandonam a prevenção por causa da cura anunciada.
Até hoje ativistas e profissionais de saúde não conseguiram apagar o incêndio da desinformação. Enquanto isso, executivos de laboratórios dormem abraçados à caixa registradora.
``Take'' dois: o governo anuncia, e a mídia divulga, a compra dos ``ingredientes do coquetel'' para 10 mil doentes de Aids e a realização de exames indispensáveis ao acompanhamento desses cidadãos, parcela da população infectada para quem realmente as drogas funcionam, fazem viver mais e melhor.
Os remédios, no entanto, chegam tarde para muitos, acabam antes da hora, faltam na maioria das unidades, principalmente nos centros onde as pessoas que vivem com Aids ainda não estão mobilizadas para gritar por seus direitos. Quanto ao acesso ao exame de carga viral, não passou de um ``release'' do Programa Nacional de Aids, mas até ganhou capa de jornal.
``Take'' três: laboratório multinacional testa em soropositivos brasileiros um novo medicamento. Escolhem nosso país pois aqui existem milhares de doentes virgens de tratamento, ideais para a pesquisa. Os voluntários não sabem o que é um ensaio clínico, buscam no estudo a atenção em saúde que não recebem no SUS.
A imprensa deu destaque aos pesquisadores, mesmo quando falavam dos benefícios de uma droga ainda em teste. O tal protocolo de pesquisa é hoje alvo de denúncia internacional: é antiético, trata os pacientes com a ultrapassada monoterapia e assiste a sua piora clínica sem tomar providências.
Governantes que anunciam o que não será efetivamente implementado, médicos que se comportam como garotos-propaganda de laboratórios e jornalistas que valorizam fontes sem checar a verdade deviam antes ouvir o grilo falante, a consciência de Pinóquio.


Mário Scheffer, 30, é diretor do Grupo Pela Vidda e membro do Conselho Nacional de Saúde.

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