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OPINIÃO
A Aids de Pinóquio
MÁRIO SCHEFFER
O desenho virou filme em cartaz, mas o clássico de Carlo Collodi é o mesmo, a história da fantasia
que ganha vida, da inverdade que
encanta. Quando o assunto é Aids,
às vezes os meios de comunicação
dão uma de Gepeto, esculpem a
mentira.
No cinema, é um robô ingênuo,
animado com efeitos especiais.
Nos jornais é mais perversa, aparece em forma de apuração descuidada, resultado de assessoria
de imprensa competente e marketing sedutor da indústria farmacêutica, dos programas oficiais de
Aids e até de médicos vaidosos, todos especialistas na arte da enganação.
``Take'' um: TVs e jornais brasileiros descobrem a ``cura da Aids''
depois da cobertura da Conferência de Vancouver, Canadá, no ano
passado. A combinação promissora de antivirais é batizada de ``coquetel'', nome de bebida doce preparada com álcool e frutas ou de
festa agradável no fim de tarde.
Soropositivos hipotecam sonhos, vendem bens, correm em
massa aos serviços de saúde atrás
dos remédios salvadores de última
geração, absurdamente caros. Pessoas potencialmente expostas ao
risco de contaminação abandonam a prevenção por causa da cura anunciada.
Até hoje ativistas e profissionais
de saúde não conseguiram apagar
o incêndio da desinformação. Enquanto isso, executivos de laboratórios dormem abraçados à caixa
registradora.
``Take'' dois: o governo anuncia,
e a mídia divulga, a compra dos
``ingredientes do coquetel'' para
10 mil doentes de Aids e a realização de exames indispensáveis ao
acompanhamento desses cidadãos, parcela da população infectada para quem realmente as drogas funcionam, fazem viver mais e
melhor.
Os remédios, no entanto, chegam tarde para muitos, acabam
antes da hora, faltam na maioria
das unidades, principalmente nos
centros onde as pessoas que vivem
com Aids ainda não estão mobilizadas para gritar por seus direitos.
Quanto ao acesso ao exame de carga viral, não passou de um ``release'' do Programa Nacional de
Aids, mas até ganhou capa de jornal.
``Take'' três: laboratório multinacional testa em soropositivos
brasileiros um novo medicamento. Escolhem nosso país pois aqui
existem milhares de doentes virgens de tratamento, ideais para a
pesquisa. Os voluntários não sabem o que é um ensaio clínico,
buscam no estudo a atenção em
saúde que não recebem no SUS.
A imprensa deu destaque aos
pesquisadores, mesmo quando falavam dos benefícios de uma droga ainda em teste. O tal protocolo
de pesquisa é hoje alvo de denúncia internacional: é antiético, trata
os pacientes com a ultrapassada
monoterapia e assiste a sua piora
clínica sem tomar providências.
Governantes que anunciam o
que não será efetivamente implementado, médicos que se comportam como garotos-propaganda de
laboratórios e jornalistas que valorizam fontes sem checar a verdade
deviam antes ouvir o grilo falante,
a consciência de Pinóquio.
Mário Scheffer, 30, é diretor do Grupo Pela
Vidda e membro do Conselho Nacional de Saúde.
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