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PASQUALE CIPRO NETO
Somos latinos, pero no mucho
Na Copa do Mundo de
1990, a Itália enfrentou a
Argentina. Comentando o jogo
pela TV Globo, Pelé disse que a
disputa punha frente a frente "o
futebol europeu e o latino". Como
a Itália fica na Europa, e a Argentina, na América do Sul, deduzi
que o "latino" em questão só podia ser a Argentina.
"Última flor do Lácio, inculta e
bela", escreveu Olavo Bilac em
seu memorável poema "Língua
Portuguesa", de 1914. O Lácio em
questão é o nome português da
região da Itália em que fica Roma, berço do Império Romano e
do latim. A "última flor do Lácio"
é a língua portuguesa, a filha caçula do latim, na visão de Bilac.
São neolatinas as "nações cuja
língua e/ou civilização procedem
da latina", diz o "Aurélio". Se a
Itália não pertence a esse grupo,
quem pertencerá? E a Argentina?
E nós? Será um acaso fazermos
parte da América Latina? É claro
que Pelé quis dizer que o jogo punha frente a frente o futebol europeu e o latino-americano.
Pelé não está sozinho nesse
equívoco. Nesta semana, a Folha
publicou este título: "Sequestrador de Bertin tem parceiro latino". No subtítulo, informava-se
que "O Gringo, como a quadrilha
o chama, usa seis nomes falsos e é
argentino ou uruguaio, segundo
a polícia de SP". Pronto! Está desvendada a "lógica" do título: o tal
sequestrador de Bertin é Pedro
Ciechanovicz, brasileiro, portanto não-latino; o latino é seu parceiro ("uruguaio ou argentino").
Não é a primeira vez que digo
que os títulos jornalísticos partem
de uma premissa que muitas vezes deixa de lado compromissos
com a língua e com a informação.
"Título bom é título que cabe",
diz a premissa. Em vez de "parceiro uruguaio ou argentino" (ou
"hispano-americano", que se
aplicaria a uruguaios e argentinos), empregou-se "latino", palavra muito menor. Eu não disse
que título bom é título que cabe?
Por falar em "latino" e em "neolatino", convém lembrar que o
prefixo grego "neo" (que significa
"novo", "moderno") só se liga por
hífen a palavras iniciadas por
"h", "r", "s" e vogal. É por isso que
se escrevem sem hífen, por exemplo, "neoliberal", "neodarwinismo" e "neolatino", enquanto
"neo-republicano", "neo-realista" e "neo-helênico" se grafam
com o traço-de-união.
A formação de "neolatino" sugere outro comentário. Temos aí
um caso de hibridismo, processo
pelo qual se forma uma palavra
pela união de elementos provenientes de línguas diferentes. Como vimos, o elemento de composição "neo" vem do grego, e "latino", obviamente, vem do latim.
Essa "receita" (grego + latim) é
a mais comum em nossas palavras híbridas. Outros conhecidos
exemplos são "televisão" ("tele"
vem do grego e significa "ao longe"; "visão" vem do latim), "automóvel" (grego + latim), "pluviometria" ("pluvio", do latim, significa "chuva"; "metria", do grego,
significa "medição") etc. Com outras formações, temos um belo
exemplo em "burocracia" ("buro" vem de "bureau", do francês, e
significa "escritório", "repartição"; "cracia" vem do grego e significa "poder", "autoridade"). Na
língua, como se vê, a globalização
não é nenhuma novidade. É isso.
Em tempo: nas duas próximas
semanas, estarei em férias. A coluna volta no dia 13 de março.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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