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São Paulo, quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

Somos latinos, pero no mucho

Na Copa do Mundo de 1990, a Itália enfrentou a Argentina. Comentando o jogo pela TV Globo, Pelé disse que a disputa punha frente a frente "o futebol europeu e o latino". Como a Itália fica na Europa, e a Argentina, na América do Sul, deduzi que o "latino" em questão só podia ser a Argentina.
"Última flor do Lácio, inculta e bela", escreveu Olavo Bilac em seu memorável poema "Língua Portuguesa", de 1914. O Lácio em questão é o nome português da região da Itália em que fica Roma, berço do Império Romano e do latim. A "última flor do Lácio" é a língua portuguesa, a filha caçula do latim, na visão de Bilac.
São neolatinas as "nações cuja língua e/ou civilização procedem da latina", diz o "Aurélio". Se a Itália não pertence a esse grupo, quem pertencerá? E a Argentina? E nós? Será um acaso fazermos parte da América Latina? É claro que Pelé quis dizer que o jogo punha frente a frente o futebol europeu e o latino-americano.
Pelé não está sozinho nesse equívoco. Nesta semana, a Folha publicou este título: "Sequestrador de Bertin tem parceiro latino". No subtítulo, informava-se que "O Gringo, como a quadrilha o chama, usa seis nomes falsos e é argentino ou uruguaio, segundo a polícia de SP". Pronto! Está desvendada a "lógica" do título: o tal sequestrador de Bertin é Pedro Ciechanovicz, brasileiro, portanto não-latino; o latino é seu parceiro ("uruguaio ou argentino").
Não é a primeira vez que digo que os títulos jornalísticos partem de uma premissa que muitas vezes deixa de lado compromissos com a língua e com a informação. "Título bom é título que cabe", diz a premissa. Em vez de "parceiro uruguaio ou argentino" (ou "hispano-americano", que se aplicaria a uruguaios e argentinos), empregou-se "latino", palavra muito menor. Eu não disse que título bom é título que cabe?
Por falar em "latino" e em "neolatino", convém lembrar que o prefixo grego "neo" (que significa "novo", "moderno") só se liga por hífen a palavras iniciadas por "h", "r", "s" e vogal. É por isso que se escrevem sem hífen, por exemplo, "neoliberal", "neodarwinismo" e "neolatino", enquanto "neo-republicano", "neo-realista" e "neo-helênico" se grafam com o traço-de-união.
A formação de "neolatino" sugere outro comentário. Temos aí um caso de hibridismo, processo pelo qual se forma uma palavra pela união de elementos provenientes de línguas diferentes. Como vimos, o elemento de composição "neo" vem do grego, e "latino", obviamente, vem do latim.
Essa "receita" (grego + latim) é a mais comum em nossas palavras híbridas. Outros conhecidos exemplos são "televisão" ("tele" vem do grego e significa "ao longe"; "visão" vem do latim), "automóvel" (grego + latim), "pluviometria" ("pluvio", do latim, significa "chuva"; "metria", do grego, significa "medição") etc. Com outras formações, temos um belo exemplo em "burocracia" ("buro" vem de "bureau", do francês, e significa "escritório", "repartição"; "cracia" vem do grego e significa "poder", "autoridade"). Na língua, como se vê, a globalização não é nenhuma novidade. É isso.
Em tempo: nas duas próximas semanas, estarei em férias. A coluna volta no dia 13 de março.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail - inculta@uol.com.br


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