São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JUVENTUDE ENCARCERADA

Estudante que passou três anos na Febem afirma que funcionários novos não têm "jogo de cintura"

Motim pode ter causa "besta", diz ex-interno

UIRÁ MACHADO
DA REDAÇÃO

Rogério Gimenes de Pontes, 21, é ex-interno da Febem. Ficou na instituição por três anos -o máximo permitido por lei. Para ele, é uma simplificação dizer que as rebeliões ocorrem como resposta aos maus-tratos sofridos pelos menores. Os motivos, diz ele, são muitos. Às vezes, "são bestas".
"Desrespeitar o sistema [regra imposta pelos funcionários ou pelos menores], é motivo para começar uma briga, que pode virar tumulto, rebelião...", diz Pontes. Ele afirma que, em certas unidades, tirar o chinelo durante a refeição é motivo de pancadaria.
O ex-interno também enumera razões sérias que estão na origem da maioria das rebeliões, como superlotação, espancamento e má-alimentação.
Para Pontes, a demissão de 1.751 funcionários foi um erro, pois os novos não têm "jogo de cintura" para lidar com os menores.
Há um ano e quatro meses fora da Febem, Pontes diz ter entrado "no crime" aos 13 anos. Participou de roubos e de homicídios. Aos 17, foi preso.
Ainda interno, escreveu, em parceria com dois outros jovens, o livro "Ingresso para a Febem", publicado no ano passado. Um dos autores foi assassinado dias depois do lançamento.
Hoje, trabalha de dia e faz faculdade de administração à noite. De vez em quando, dá palestras para adolescentes. Planos? Entre outros, quer trabalhar na Febem e publicar um novo livro.
A seguir, leia trechos de entrevista concedida na última sexta, depois de uma palestra na unidade da Febem do Brás.

 

Folha - Por que há tanta rebelião na Febem?
Rogério Gimenes de Pontes -
Há muitos motivos. Espancamento, mãe, alimentação, superlotação... Por exemplo, se um funcionário xingar a mãe de um adolescente é o suficiente para uma rebelião. Alimentação ruim também gera rebelião. Eu já peguei tumulto, que é quase rebelião, por causa de alimentação. São muitos motivos. Se tirar o espancamento, os outros motivos continuam. Só que agora é mais fácil fazer rebelião.

Folha - Por quê?
Pontes -
É difícil falar desse caso de agora, mas, como o governador tira tantos funcionários? Ele praticamente generalizou: "Todo mundo espancou, bateu". Na minha opinião, isso está completamente errado. A punição tem que ser: "Se eu fiz, tenho que pagar". Ele tirou aqueles funcionários experientes, que já sabiam lidar com os menores. Essa demissão está desestruturando a Febem.
Para trabalhar na Febem, precisa de um processo de adaptação. Sem isso, chega lá dentro sem um convívio com os adolescentes e sem jogo de cintura, acaba gerando rebeliões. Não é trabalho para qualquer pessoa.

Folha - Os funcionários novos atrapalham?
Pontes -
Faltou um pouco de senso, mas eu não sei. Fica difícil falar, porque não tenho conhecimento de política. Mas tenho conhecimento prático. Eu já vi funcionário novo entrar. Não tem estrutura, não tem jogo de cintura. Menor da Febem é diferente. Não é aquela coisa de menor da sociedade, que você encontra com ele na rua, dando risada.
Lá dentro, tem um sistema que obriga você a pensar mais que o outro. Não dá pra colocar um funcionário que acabou de vir da sociedade. Uma vez explicaram que tem um processo para entrar no pátio, um treinamento pra lidar com adolescentes. Mas não adianta. Quando entra lá, toma aquele baque. Vem os menores falando gíria, andando no gingado, tem menor que é bocudo, responde, ameaça...
O funcionário, se não tem jogo de cintura, vai recuar, os menores vão para cima, para cima, já dominam a casa e é motivo de rebelião. Febem tem casos e casos. Não tem como simplificar, dizer que é uma coisa ou outra. Tem várias coisas.

Folha - Como é a relação com os funcionários e entre os internos?
Pontes-
A relação depende muito dos dois lados. Eu posso falar de mim. No começo, eu não tive boa relação, não. Fui espancado, espanquei interno...
Lá dentro, existem regras de convívio, tanto do lado dos menores como do lado dos funcionários. É o que a gente chama de sistema. Eu tenho dois boletins de ocorrência por agressão porque fui contra o sistema. Geralmente é por coisa banal, besta. Começa a briga, que pode virar tumulto, rebelião...
Por exemplo, fiquei em unidade em que não podia tirar o chinelo na hora da refeição. Se tirasse, era falta gravíssima no sistema. Isso era da casa, regra dos próprios menores. Tem sistema que não permite falar palavrão, não permite tocar no outro, gesticular, levantar a camisa em dia de visita... Todo mundo fica olhando para ver se o outro comete falha. E não tem como mudar o sistema, ninguém sabe quem criou, mas todo mundo tem que reproduzir.
Eu mesmo procurava problema, espancava, batia nos novatos. Aí veio um momento de reflexão, de tristeza, olhei para o que estava fazendo e resolvi mudar.

Folha - Teve algum motivo?
Pontes -
Percebi que precisava fazer algo por mim e pela minha família. E tem duas coisas que o ser humano tem, mas não usa. A arte do pensamento e o estudo. Se tiver pensamento legal e usar o estudo, dá para ter um futuro legal.


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.