São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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DANUZA LEÃO

Pobre agenda

O amor, como se sabe, não é eterno; mas a amizade deveria ser. Deveria, só que não é.
As afinidades fazem com que duas pessoas se tornem amigas, e os afetos não acabam assim de repente -a não ser aqueles entre homem e mulher, que podem se transformar, em minutos, da maior das paixões no mais sangrento dos ódios.
Por que, então, tantas vezes surge o afastamento, sem nenhuma explicação? É que as pessoas mudam, e a vida as leva para rumos diferentes. Um dia a gente se encontra, e já no primeiro olhar sabe que não vai dar para trocar telefones e que é melhor nem sentar para tomar um café, por falta de assunto. Uma vai contar que está apaixonada e vai se casar pela terceira vez; enquanto isso a outra, que só teve um marido e foi maltratada fisicamente pelo tempo, não tem do que falar. Da filha que está se matando para passar no vestibular? Do filho que se meteu com uma turma barra pesada, e que ela passa as noites em claro, esperando que chegue? Elas só teriam um assunto comum, o passado, e o passado às vezes fica muito distante, e raramente interessa.
É difícil ter amigos: somos todos tão diferentes (e diferentes a cada dia) que às vezes não dá para falar nem com aquela amiga de fé, aquela com quem fala sempre, porque naquele dia você está estranha, inquieta, precisando de uma coisa que não sabe o que é. Como ela, tão sensata, vai entender? Você se afasta e ela acha que você sumiu porque é meio doida - no que talvez tenha razão.
Em muitos momentos não quer falar mesmo é com ninguém, nem ver ninguém, e com isso vai se isolando. A humanidade diz que está errada, mas o que sabe a humanidade do que se passa no seu coração? Ou será que está mesmo errada e deveria ter mais tolerância, pois assim a vida seria mais fácil? Será que não deveria fazer um esforço para ser mais leve e rir de tudo e de nada, como era antes?
A vida a tornou radical demais, e ela agora critica -dentro dela mesma- os que dizem coisas sem sentido, que acham graça em histórias que não têm o menor interesse e sorriem para pessoas sem vontade, por algum interesse oculto. Quanta injustiça: e ela, por acaso, nunca fez isso? Até fez, mas em outros tempos.
Resolve fazer um esforço e fazer como os outros. Combina de jantar com pessoas teoricamente agradáveis, passa por cima de algumas coisas e, em nome das dificuldades da vida, até aceita um trabalho que contraria tudo que pensa -afinal, trabalho é trabalho, essa é sempre a desculpa, e a vida é dura. Mas quando volta para casa é um alívio, e pensa que estaria mais em paz se tivesse ficado vendo o final de um filme em preto e branco -a televisão está sem cor.
Tenta botar a culpa nos outros: alguém insistiu, ela cedeu, a vida é complicada, e se até o PT mudou porque ela não pode mudar também, em nome de uma vida mais fácil?
Mas não adianta: ninguém é mais severa ao julgar seus atos do que ela mesma. Foi ela quem vacilou, já sabia que ia ser assim, e agora põe a raiva nos outros, quando está com raiva é dela mesma, que é o pior tipo de raiva que se pode ter.
Pensando bem, em todos esses anos subtraiu mais nomes da memória do que acrescentou -mas percebe que não o suficiente.
Resolve abrir a agenda para saber com quantas pessoas pode realmente conversar, pessoas que a entendam de verdade, com quem possa abrir o coração.
Mas muda de idéia e prefere não arriscar.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br

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