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LETRAS JURÍDICAS
O direito e o avesso da clonagem
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Nicolau Copérnico
morreu 43 anos depois da
chegada de Cabral ao que viria a
ser a Bahia, mas revolucionou o
conhecimento astronômico do
planeta mais do que todos os navegantes do século 16. Em seu livro "De Revolutionibus" (cuja
publicação, diga-se, foi aprovada
pelo papa Clemente VII e criticada por Lutero) provou que o dogma católico da Terra como centro
do universo era falso. Toda a milenar "verdade científica", proclamada, desde Cláudio Ptolomeu,
14 séculos antes, se esboroou.
Antes e depois de Copérnico outras "verdades" sacramentadíssimas da ciência não resistiram ao
progresso. Pois bem: esta introdução tem a ver com o título, pois a
antes impensável clonagem humana parece próxima de ser realizada, cabendo ao operário do
direito avaliar a juridicidade dela
e imaginar seus efeitos. O assunto
inspirou debate recente no CEJ -
Centro de Estudos Jurídicos, dirigido pelo ministro Milton Luiz
Pereira, do Conselho da Justiça
Federal, em Brasília, divulgado
pela "Revista do CEJ". Foram
quatro mesas redondas, a última
das quais ponderou sobre os tropeços no caminho do progresso e
as mudanças que provocará no
direito.
Falando depois do médico Roger Abdelmassih, que mostrou perigos da clonagem, no estágio
atual da ciência e do professor
Marco Segre, que discutiu problemas éticos, a recomendarem a alteração do conceito clássico do
início da vida, o jurista filósofo
Luiz Fernando Coelho defendeu a
recolocação da clonagem humana. Deve ser posta no que denominou "as fronteiras da inexorável passagem da ideologia jurídica atual para nova mentalidade
que tende a afirmar-se, a despeito
da resistência que o novo sempre
suscita".
Tema nuclear, suscitado por Segre, diz respeito ao destino do embrião, que no meu entender,
quando gerado em laboratório,
não tem alma, nem vida humana. É projeto a ser "humanificado" pelo ventre da mulher. Os cuidados defendidos por Abdelmassih são evidentemente necessários, como qualquer inovação
científica, antes de sua aplicação
plena. É campo para lembrar do
aprendiz de feiticeiro, na lenda
musicada por Paul Dukas, que,
depois não sabia como parar o
efeito desastrado de sua mágica.
Se, no dizer de Coelho, as fronteiras da ciência e da aceitação
social da clonagem, forem ultrapassadas, o direito terá de ser inteiramente repensado. Não subsistirão conceitos relativos às pessoas, aos seus bens, à sua sucessão, às relações de família entre os
cônjuges e destes com seus filhos,
à individualidade e à personalidade.
O dever do jurista, em face da
possibilidade da clonagem gera
perguntas e recomenda a proposta de soluções, até para manipulação genética destinados a aprimorar a qualidade dos seres humanos. No nível da prática jurídica do dia a dia, caberá definir o
direito material dos prejudicados,
por exemplo, nas relações de família, nos vínculos contratuais.
No plano do direito processual,
reapreciaremos matérias alusivas
à legitimidade e ao interesse para
mover e contestar ações.
Se a clonagem vier, será o fim
do mundo e da história, mas sem
cataclismas. A partir da transposição desse limite científico nem o
mundo será o mesmo, nem a vida
terá o significado atualmente
aceito. Será um admirável mundo novo no qual zombaremos de
verdades científicas absolutas do passado.
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