São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

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LETRAS JURÍDICAS

O direito e o avesso da clonagem

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Nicolau Copérnico morreu 43 anos depois da chegada de Cabral ao que viria a ser a Bahia, mas revolucionou o conhecimento astronômico do planeta mais do que todos os navegantes do século 16. Em seu livro "De Revolutionibus" (cuja publicação, diga-se, foi aprovada pelo papa Clemente VII e criticada por Lutero) provou que o dogma católico da Terra como centro do universo era falso. Toda a milenar "verdade científica", proclamada, desde Cláudio Ptolomeu, 14 séculos antes, se esboroou.
Antes e depois de Copérnico outras "verdades" sacramentadíssimas da ciência não resistiram ao progresso. Pois bem: esta introdução tem a ver com o título, pois a antes impensável clonagem humana parece próxima de ser realizada, cabendo ao operário do direito avaliar a juridicidade dela e imaginar seus efeitos. O assunto inspirou debate recente no CEJ - Centro de Estudos Jurídicos, dirigido pelo ministro Milton Luiz Pereira, do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, divulgado pela "Revista do CEJ". Foram quatro mesas redondas, a última das quais ponderou sobre os tropeços no caminho do progresso e as mudanças que provocará no direito.
Falando depois do médico Roger Abdelmassih, que mostrou perigos da clonagem, no estágio atual da ciência e do professor Marco Segre, que discutiu problemas éticos, a recomendarem a alteração do conceito clássico do início da vida, o jurista filósofo Luiz Fernando Coelho defendeu a recolocação da clonagem humana. Deve ser posta no que denominou "as fronteiras da inexorável passagem da ideologia jurídica atual para nova mentalidade que tende a afirmar-se, a despeito da resistência que o novo sempre suscita".
Tema nuclear, suscitado por Segre, diz respeito ao destino do embrião, que no meu entender, quando gerado em laboratório, não tem alma, nem vida humana. É projeto a ser "humanificado" pelo ventre da mulher. Os cuidados defendidos por Abdelmassih são evidentemente necessários, como qualquer inovação científica, antes de sua aplicação plena. É campo para lembrar do aprendiz de feiticeiro, na lenda musicada por Paul Dukas, que, depois não sabia como parar o efeito desastrado de sua mágica.
Se, no dizer de Coelho, as fronteiras da ciência e da aceitação social da clonagem, forem ultrapassadas, o direito terá de ser inteiramente repensado. Não subsistirão conceitos relativos às pessoas, aos seus bens, à sua sucessão, às relações de família entre os cônjuges e destes com seus filhos, à individualidade e à personalidade.
O dever do jurista, em face da possibilidade da clonagem gera perguntas e recomenda a proposta de soluções, até para manipulação genética destinados a aprimorar a qualidade dos seres humanos. No nível da prática jurídica do dia a dia, caberá definir o direito material dos prejudicados, por exemplo, nas relações de família, nos vínculos contratuais. No plano do direito processual, reapreciaremos matérias alusivas à legitimidade e ao interesse para mover e contestar ações.
Se a clonagem vier, será o fim do mundo e da história, mas sem cataclismas. A partir da transposição desse limite científico nem o mundo será o mesmo, nem a vida terá o significado atualmente aceito. Será um admirável mundo novo no qual zombaremos de verdades científicas absolutas do passado.



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