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São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Visão teórica de Adorno em face do direito

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O centenário do nascimento do filósofo Theodor W. Adorno (1903-1969) deu ensejo, no curso deste mês, a renovada análise de suas posições. Foi essencialmente um teórico, despreocupado das consequências práticas de suas idéias. Em entrevista dada pouco antes de sua morte, que o suplemento Mais! reproduziu há dias, Adorno dizia: "Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer condutas ou quaisquer ações. Sou um homem teórico, que sente o pensamento teórico".
Na esfera jurídica, a mesma trilha de Adorno foi percorrida por Hans Kelsen em sua "Teoria Pura do Direito", querendo despojá-la de todo contato da prática com outras ciências. A tarefa não foi fácil. A mais simples das aplicações das teorias jurídicas envolve elementos práticos inafastáveis. Adorno reconheceu a deficiência quando disse: "O relacionamento infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que a teoria se vê submetida a uma pré-censura prática". Não há como evitar tal submissão. Serviu de exemplo, no Brasil dos anos 1964 a 1985, em plena ditadura, a avaliação do direito constitucional, como se tivesse algum significado efetivo, diante da força dos atos institucionais, em condições agravadas pelo controle absoluto das notícias divulgadas.
Mesmo nos regimes democráticos, está cada vez mais forte a manipulação de opinião pública, seriamente criticada por Adorno. Permite contornar exigências e limites do direito, tal o manuseio dos fatos pelos governantes. A visão prática se apóia, nesses casos, em dados errôneos ou distorcidos. A invasão do Iraque foi explicada, em larga margem, com a responsabilidade de Saddam Hussein, pelo ataque ao World Trade Center em setembro de 2001. Apenas na última quarta-feira George W. Bush reconheceu que a atribuição era improcedente. Pesquisas demonstram, contudo, que 70% do povo americano acredita que as torres gêmeas de Nova York foram derrubadas por Saddam.
A avaliação puramente teórica, nesta fase da transição da humanidade, em que não abaixou a poeira das transformações sociais, científicas e econômicas, repercute pouco ante o impacto da notícia-produto de entretenimento. A comunicação social é, desse ângulo, irresponsável no sentido de que exerce a crítica sem se sentir obrigada a apontar o que deve ser feito para melhorar o resultado. Adorno nega a obrigação e discorda desse que chama "um preconceito burguês". Defende a posição de livros voltados para propósitos puramente teóricos e que, apesar desse rumo, modificaram a consciência e a realidade social. Admitiu a prática não-violenta para enfrentar a violência oficial, com uma única exceção: "A um fascismo real só se pode reagir com violência".
A teoria pura do direito não tem boa repercussão na atualidade porque não satisfaz os requisitos práticos do enfrentamento dos problemas gerados na realidade social. Neste período de transformação constante, a sedução teórica é prejudicada, muito embora Adorno afirmasse a manutenção da teoria, mesmo "sob os constrangimentos práticos de um mundo funcionalmente pragmatizado". Acrescentava: "A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou mudanças imediatas. Ela muda precisamente à medida que permanece teoria". Talvez seja assim em outros campos. No do direito, a teoria pura subsiste como exercício intelectual dos mais interessantes, mas incapaz de mudar as relações dos seres humanos entre si, deles com o Estado e dos Estados uns com os outros.


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