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LETRAS JURÍDICAS
Visão teórica de Adorno em face do direito
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
O centenário do nascimento do filósofo Theodor
W. Adorno (1903-1969) deu ensejo, no curso deste mês, a renovada
análise de suas posições. Foi essencialmente um teórico, despreocupado das consequências
práticas de suas idéias. Em entrevista dada pouco antes de sua
morte, que o suplemento Mais!
reproduziu há dias, Adorno dizia:
"Jamais ofereci em meus escritos
um modelo para quaisquer condutas ou quaisquer ações. Sou um
homem teórico, que sente o pensamento teórico".
Na esfera jurídica, a mesma trilha de Adorno foi percorrida por
Hans Kelsen em sua "Teoria Pura
do Direito", querendo despojá-la
de todo contato da prática com
outras ciências. A tarefa não foi
fácil. A mais simples das aplicações das teorias jurídicas envolve
elementos práticos inafastáveis.
Adorno reconheceu a deficiência
quando disse: "O relacionamento
infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que a
teoria se vê submetida a uma pré-censura prática". Não há como
evitar tal submissão. Serviu de
exemplo, no Brasil dos anos 1964
a 1985, em plena ditadura, a avaliação do direito constitucional,
como se tivesse algum significado
efetivo, diante da força dos atos
institucionais, em condições
agravadas pelo controle absoluto
das notícias divulgadas.
Mesmo nos regimes democráticos, está cada vez mais forte a manipulação de opinião pública, seriamente criticada por Adorno.
Permite contornar exigências e limites do direito, tal o manuseio
dos fatos pelos governantes. A visão prática se apóia, nesses casos,
em dados errôneos ou distorcidos.
A invasão do Iraque foi explicada, em larga margem, com a responsabilidade de Saddam Hussein, pelo ataque ao World Trade
Center em setembro de 2001. Apenas na última quarta-feira George W. Bush reconheceu que a atribuição era improcedente. Pesquisas demonstram, contudo, que
70% do povo americano acredita
que as torres gêmeas de Nova
York foram derrubadas por
Saddam.
A avaliação puramente teórica,
nesta fase da transição da humanidade, em que não abaixou a
poeira das transformações sociais, científicas e econômicas, repercute pouco ante o impacto da
notícia-produto de entretenimento. A comunicação social é, desse
ângulo, irresponsável no sentido
de que exerce a crítica sem se sentir obrigada a apontar o que deve
ser feito para melhorar o resultado. Adorno nega a obrigação e
discorda desse que chama "um
preconceito burguês". Defende a
posição de livros voltados para
propósitos puramente teóricos e
que, apesar desse rumo, modificaram a consciência e a realidade
social. Admitiu a prática não-violenta para enfrentar a violência
oficial, com uma única exceção:
"A um fascismo real só se pode
reagir com violência".
A teoria pura do direito não
tem boa repercussão na atualidade porque não satisfaz os requisitos práticos do enfrentamento dos
problemas gerados na realidade
social. Neste período de transformação constante, a sedução teórica é prejudicada, muito embora
Adorno afirmasse a manutenção
da teoria, mesmo "sob os constrangimentos práticos de um
mundo funcionalmente pragmatizado". Acrescentava: "A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou mudanças imediatas. Ela muda precisamente à
medida que permanece teoria".
Talvez seja assim em outros campos. No do direito, a teoria pura
subsiste como exercício intelectual dos mais interessantes, mas
incapaz de mudar as relações dos
seres humanos entre si, deles com
o Estado e dos Estados uns com os
outros.
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