São Paulo, segunda-feira, 20 de setembro de 2004

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MOACYR SCLIAR

Carta ao pai

 
Um homem fantasiado de Batman conseguiu driblar a segurança do Palácio de Buckingham, residência da família real britânica em Londres, e pendurar em uma das sacadas uma faixa que dizia: "Superpais lutando pelo direito de ver seus filhos". Trata-se de protesto contra restrições judiciais ao direito de pais divorciados de verem seus filhos. Mundo, 14.set.2004

Carta ao pai. Franz Kafka, título de livro
 

"Querido pai : antes de mais nada, uma confissão. Durante muitos anos, papai, eu odiei você. Para ser mais preciso, desde a época em que você se divorciou da mamãe. Muitas pessoas se divorciam, e alguma briga sempre resulta disso, mas o caso de vocês foi horroroso. Não é opinião só minha; os amigos de vocês, os parentes diziam que nunca tinham visto uma separação com tanto ódio. Mas saiu o divórcio, de qualquer maneira, e depois disso você sumiu. Você simplesmente sumiu. Claro, de vez em quando você vinha me buscar, levava-me ao cinema, ou ao parque, ou a um restaurante. Não eram encontros muito agradáveis, aqueles. Porque você não falava. Eu tentava puxar conversa, perguntava o que você andava fazendo. Você respondia que tinha uma atividade sigilosa, que não podia comentar.
Mamãe tinha, claro, outra explicação acerca de sua conduta. Seu pai nunca prestou, era o que ela dizia, amargurada:
- Nunca quis saber de trabalhar, nunca teve um emprego decente. Eu é que tive de sustentar a família. De vez em quando ele desaparecia por dias seguidos, por semanas. Ia viver as aventuras dele, o cretino. E a burra aqui dando duro.
Que mamãe era convincente, prova-o a decisão do juiz, proibindo você de me ver. Se fiquei chateado? Fiquei, mas não muito. De qualquer jeito, já não nos víamos há tempos. Estava disposto a esquecer você, mesmo porque o novo marido de mamãe me tratava muito bem. Como ele mesmo dizia, queria ser um pai para mim, o pai que, na prática, eu não tivera.
E aí a surpresa: abri o jornal e lá estava sua foto, na sacada do Palácio de Buckingham. Naquele momento descobri o seu segredo: papai, você é o Batman! Era por isso que você levava uma vida misteriosa, era por isso que você sumia: porque você tinha, em segredo, de enfrentar o crime. Papai, você é um herói. Não: você é um super-herói.
Não preciso lhe dizer que estou superorgulhoso de você. E já resolvi uma coisa: se você é o Batman, eu serei o seu Robin. Juntos, combateremos os bandidos, os criminosos. Mamãe que reclame quanto quiser. Batman e Robin estarão juntos para sempre.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

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