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PASQUALE CIPRO NETO
"Liberdade assistida"
Depois de mais um capítulo da interminável novela
da interminável barbárie brasileira, a sociedade se pôs novamente a discutir a questão da
maioridade penal. Muita gente
não aceita o fato de que menores
infratores fiquem internados por
apenas três anos e depois sejam
postos em "liberdade assistida".
Pois é aí que quero meter a minha colher: que se entende por "liberdade assistida"? "Liberdade
amparada" ou "liberdade vigiada"? Minha pergunta se deve ao
que ouvi em conversas aqui e ali.
Notei que muita gente entende
que "liberdade assistida" equivale a "liberdade vigiada, observada". E essas pessoas não gostam
nem um pouco da idéia ("Até parece que o governo vai ficar vigiando os passos desse pessoal").
A expressão não tem esse sentido. O que o Estatuto da Criança e
do Adolescente determina é que,
cumpridos os tais três anos de "internação", o menor infrator seja
posto em liberdade e receba assistência do Estado. Por "assistência" entende-se "ajuda", "amparo", "auxílio", "proteção" etc.
Chegamos ao xis do problema:
a forma "assistida" vem do particípio de "assistir", mas de qual
"assistir", do que significa "ver",
"presenciar", ou do que significa
"amparar", "prestar auxílio"?
Vamos ver isso com cuidado. A
tradição gramatical ensina que,
quando significa "presenciar",
"ver", o verbo "assistir" rege a
preposição "a". Em seu monumental poema "Uma Hora e Mais
Outra" (de "A Rosa do Povo"),
Carlos Drummond de Andrade
escreveu estes versos: "Há uma
hora triste / que tu não conheces. /
Não é a da tarde (...) / e também
não é a / do nascer do sol / enquanto enfastiado / assistes ao
dia / perseverar no câncer, / no pó,
no costume, / no mal dividido /
trabalho de muitos".
Em "assistes ao dia perseverar
no câncer", nota-se a opção pela
regência tradicional de "assistir".
A tradição gramatical ensina
também que, com verbos indiretos, não há passiva. Não se faz,
por exemplo, a passiva de "Gosto
de você" ou de "Isto pertence a você". Sob essa ótica, não haveria a
passiva de "Ele assistiu ao jogo"
nem se poderia entender "assistida" como "observada", "vista".
Pois é aí que se faz mister uma
observação, que talvez explique o
entendimento que parte do povo
faz da expressão "liberdade assistida": no Brasil, é viva a tendência para o emprego de "assistir"
como transitivo direto quando
usado com a acepção de "ver",
"presenciar" (fato já registrado
no "Houaiss" e no "Aurélio").
Que significa isso? Que, se no
uso efetivo esse "assistir" é verbo
transitivo direto ("Muita gente
assistiu o jogo"), a voz passiva
com esse sentido de "assistir" é
mais do que natural para o falante brasileiro ("O jogo foi assistido
por muita gente"). Daí para que
se julgue que "liberdade assistida" possa equivaler a "liberdade
observada" é um passo.
E de onde vem o sentido que a
expressão "liberdade assistida"
efetivamente tem no estatuto?
Vem da passiva de "assistir" com
o sentido de "amparar", "prestar
auxílio". Com esse sentido, "assistir" costuma aparecer como transitivo direto ("O ministro não assiste os idosos"), embora não faltem registros de seu emprego como indireto ("O ministro não assiste aos idosos"). Ao fim e ao cabo, "liberdade assistida" equivale
a "liberdade amparada". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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