São Paulo, segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

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MOACYR SCLIAR

A barba do Papai Noel


Achava barba coisa extravagante, incompatível com a seriedade que esperava do marido


No mercado de "aluguel" de papais noéis para distribuir presentes no dia do Natal, quanto maiores as semelhanças com o bom velhinho, mais caro pode sair o serviço. A contratação de um Papai Noel gordinho e de barba verdadeira custa pelo menos 50% mais que a de um ator, que terá de usar barba e barriga falsas. O Papai Noel chega de carro próprio ou motorista para distribuir os presentes. Mercado, 10.dez.2010

JÁ ESTAVAM CASADOS havia mais de 30 anos (os dois filhos, agora homens, não moravam mais com eles), quando o homem resolveu mudar de vida. Até então havia sido um pacato funcionário público, um homem apegado às rotinas, aos hábitos, aos mesmos programas de tevê. Agora, porém, estava na hora de mudar, e esta mudança se expressaria no aspecto físico. Deixou crescer a barba.
E a barba cresceu rapidamente, furiosamente, até. Logo estava enorme, uma vasta barba completamente branca, que chamava a atenção de todo o mundo. Você parece um Papai Noel, diziam-lhe os colegas, uma impressão reforçada pela volumosa barriga.
A mulher não gostou nada daquela novidade. Para começar, achava barba coisa extravagante, ridícula, incompatível com a seriedade que esperava do marido.
Além disso, a barba irritava-lhe a pele, dava-lhe alergia. Num Natal, quando o marido perguntou-lhe o que queria de presente, foi taxativa: "Quero que você raspe essa coisa".
Pedido que ele simplesmente se recusou a atender. Ou ela aceitava-o com a barba, ou o casamento estava acabado.
Ela teve vontade de dizer que então o casamento estava acabado, mas como recomeçar a vida àquela altura? Teve de aceitar. No ano que se seguiu mal se falavam. Ela inclusive dormia no quarto que fora dos filhos.
Um dia ele voltou para casa triunfante. "Você sempre detestou a minha barba", disse, "pois fique sabendo que existe alguém que a admira". Esse alguém era a dona de uma loja de brinquedos.
Ela estava atrás de um Papai Noel que tivesse barba verdadeira -seus pequenos clientes faziam questão disso e que fosse gordinho.
Era exatamente o caso dele, e daí resultara um contrato que lhe proporcionaria muito boa grana.
Não só a grana. A dona da loja, mulher bonita, divorciada, sentira-se atraída por ele; adorava homens de barba. Depois do Natal, jantariam juntos. E aí, que rolasse o que tinha de rolar. Triunfante e eufórico (havia tomado várias doses de conhaque), ele foi dormir.
Acordou na manhã seguinte com a cabeça doendo e sentindo-se esquisito. Alguma coisa estava faltando.
A barba.
Passou a mão no rosto e constatou; a barba havia sido cortada. O que dela restava estava espalhado no chão perto da cama. Levantou-se, furioso, pronto para brigar com a mulher, para dar-lhe uma surra, se fosse o caso.
Mas não a encontrou. Tinha feito a mala e partido. Sobre a mesa da cozinha, onde o café estava servido, havia um bilhete. Dizia apenas: "Feliz Natal".

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br


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