São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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GILBERTO DIMENSTEIN

A doença de Mário Covas virou um show

Para avaliar o impacto do sofrimento do governador Mário Covas na opinião pública, a publicitária Rose Saldiva reuniu este mês 377 leitores de jornais das classes A, B e C, moradores de São Paulo.
Eles foram divididos em grupos e estimulados a falar sobre medos, esperanças e indignações. Solidariedade, compaixão, pena, admiração foram as manifestações -previsíveis- provocadas pelo câncer de Covas.
Mas quem acabou mesmo no tomógrafo foi a imprensa. Além da previsibilidade das emoções, as frases revelaram a indignação dos entrevistados ante o que consideram a doença do sensacionalismo da mídia, municiada pelos médicos.
A pesquisa detectou um incômodo, nos limites da irritação e da ojeriza, diante do comportamento de médicos e jornalistas, acusados de fazer do calvário do governador um show, dividido em capítulos.
O mal-estar é compartilhado por 87% dos entrevistados. Veja algumas frases registradas nos debates dos grupos sobre a cobertura feita pela imprensa:
1) "São impessoais, insensíveis e sensacionalistas";
2) "Os fotógrafos são muito cruéis. Vi uma foto do Covas sendo carregado, pesaroso, e os médicos sorrindo para a câmera";
3) "Tudo o que vejo não é um tratamento nem um esforço de cura, mas uma conferência";
4) "É claro que alguma coisa eles (médicos e jornalistas) têm a ganhar com essa doença do Covas. Menos ele, menos a família dele e menos os 160 milhões de brasileiros";
5) "Olhando aquele material de jornal e de televisão, mais parece uma aula de ciência do primeiro ano de medicina";
6) "Para mim, esses médicos não passam de espécies de Mr. M. Desvendam o truque. Mas não fazem a mágica".

 

Não estou aqui dizendo que a imprensa não tenha certa propensão para se entusiasmar com informações trágicas que seduzam o leitor.
Entre a notícia que provoca sensação e o sensacionalismo, há um limite tênue. Atrair o leitor integra o DNA da imprensa. Como se expõe um fato que por si só já provoca sensação é o que vai definir se há ou não sensacionalismo.
Não vou também defender médicos. Como os jornalistas, eles também escorregam na vaidade, encantados por câmeras e flashes.
O próprio leitor tem um comportamento dúbio. Ao mesmo tempo em que deglute vorazmente cada detalhe da doença -funcionamento da bolsa de colostomia para substituir o intestino, por exemplo-, ele se incomoda com contato tão íntimo com a fragilidade humana.
A essência do apelo dramático de Covas está em lembrar a todos, a cada instante, a fragilidade de cada um.
Torcer por ele é torcer por nós mesmos. Mas a imprensa, com seus termos científicos e desenhos explicativos não torce, relata friamente. À medida que expõe a decadência física, embute o suspense de uma contagem regressiva.
O próprio governador colabora para a crueza relatorial de sua luta com o tumor, ao determinar, num inusitado exemplo de transparência, que as informações sejam transmitidas à imprensa. Decidiu brigar com o tumor em público. Do mesmo jeito que brigou, de peito aberto, com professores acampados na frente da Secretaria da Educação.
É uma briga, transformada em dor coletiva e multimídia, acompanhada em tempo real. As câmeras registram a inconformidade diante da mortalidade.
Covas tenta manter a rotina administrativa como se quisesse desprezar a doença, tentando acuá-la com a paixão ou com o vício da ação pública.
Revela o extremo da vulnerabilidade em cada novo exame ou na dificuldade de locomoção. E revela o extremo da grandeza: a abnegação de fazer do viver o pensar na coletividade.
Até onde ele suportará? É o que todos perguntam, quase como se estivessem diante de uma versão do "No Limite".

 

Vivemos na era do entretenimento, da mídia, do tempo real, do reinado das pesquisas de opinião e do marketing, ingredientes do que se batizou de sociedade de informação. Diluem-se as linhas que separam o entretenimento da notícia.
O tempo real faz do presente uma força devoradora da noção de perspectiva de futuro e aprendizado do passado. É a ditadura do hoje, do agora.
Na sua luta contra a morte, Mário Covas acaba enquadrado pela cultura contemporânea da sociedade de informação (você vale quanto aparece) e sua agonia se transforma num pungente show. Um capítulo por dia.
A diferença é que é um show de um grande homem público na vida real, que tem mostrado o respeito pela comunidade, numa terra de espertalhões.

 

PS- A percepção dos leitores sobre Covas faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre o humor do paulistano, intitulada "São Paulo, a Morte Anunciada". Uma das conclusões: "Os paulistanos se sentem órfãos, incrédulos e, sobretudo, ressabiados diante da morte iminente, quer econômica, quer física. Portanto acreditam que sejam órfãos de si mesmos". Coloquei parte da pesquisa no seguinte endereço: www.aprendiz.org.br

E-mail - gdimen@uol.com.br


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