São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

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A inimiga do Carnaval

MOACYR SCLIAR

Há pessoas que não gostam do Carnaval. Há pessoas que preferem passar o período em alguma praia, na serra ou até mesmo em retiro espiritual. Esse não era bem o caso da minha vizinha, dona Almerinda. Ela não apenas detestava a folia de Momo; ela se considerava uma inimiga do Carnaval, que não passava, segundo dizia, de um pretexto para a vagabundagem, quando não para a sacanagem. Não perdia ocasião de fazer verdadeiros comícios contra os foliões.
Dona Almerinda não ia, obviamente, ao Carnaval. Mas o Carnaval ia à dona Almerinda. É que em nossa rua funcionava a sede de uma escola de samba. E muitas semanas antes do Carnaval começavam os ensaios. Que iam até tarde, com a batucada a milhares de decibéis. Ninguém dormia, obviamente, mas era uma situação que todos nós, moradores, aceitávamos, mesmo porque torcíamos pelo êxito da nossa escola.
Todos aceitavam, eu disse? Disse-o mal. Porque a uma pessoa muito indignava. E esta pessoa era, naturalmente, a dona Almerinda:
- Esta cambada de vadios - bradava, a quem quisesse ouvir - não trabalham e não deixam descansar aqueles que trabalham.
Não ficava só no protesto. Tentou mobilizar os vizinhos com um abaixo-assinado. Sem resultado: não conseguiu colher mais que três ou quatro assinaturas, e duas eram de parentes que lhe deviam obrigações. Ninguém queria transformar os carnavalescos em inimigos. O que deixava dona Almerinda ainda mais furiosa:
- Vocês não passam de uma corja de medrosos - bradava, em plena via pública.
O pessoal da escola, naturalmente, não dava a mínima para a reclamação. Continuavam ensaiando, e à medida que se aproximava o Carnaval, o entusiasmo crescia. Paralelamente, crescia a revolta de dona Almerinda. E chegou uma noite em que ela não aguentou mais.
Faltavam poucos dias para o desfile. Todos os prognósticos indicavam que a escola poderia obter uma boa classificação - quem sabe até levar o primeiro prêmio. Os sambistas redobravam os seus esforços. Os tamborins ressoavam mais alto que nunca. As vidraças das casas chegavam a vibrar.
Quem não vibrava era a dona Almerinda. Fechava portas e janelas, colocava algodão nos ouvidos - e mesmo assim não podia dormir: continuava ouvindo aquela batucada infernal. Uma noite não aguentou mais. Sacudiu o marido, que dormia à sono solto:
- Acorda, Gervásio. Quero que você dê um jeito nisso.
Agora: o seu Gervásio, um bancário aposentado, era excelente pessoa. A ele pouco se lhe dava que a escola de samba ensaiasse próximo de sua casa, mesmo porque, surdo, quase nada escutava. Mas a dona Almerinda queria um aliado, e o único que estava por perto era ele:
- Você vai lá e diz que é para acabar com essa barulhada já.
O marido ainda tentou ponderar que aquela era uma missão impossível, que ele iria se incomodar e talvez até levasse uns tapas. Mas dona Almerinda não queria saber de nada: vá lá, comandou. Com um resignado suspiro o marido se levantou e foi. Ela ficou à espera, braços cruzados, batendo o pé, impaciente.
Passaram duas horas, três horas e nada, o homem não voltava. Lá pelas tantas dona Almerinda começou a se afligir. O que teria acontecido com o marido? Sem saber o que fazer, vestiu-se e foi até o terreiro. E o que viu quase a fez desmaiar.
O marido estava ali, sim. Mas não estava, de dedo em riste, protestando. Estava, sim, dançando animadíssimo com uma bela mulata, que seguia os passos dele encantada.
Dona Almerinda bateu em retirada. Porque esta qualidade, pelo menos, ela tinha: sabia se reconhecer derrotada.



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