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A inimiga do Carnaval
MOACYR SCLIAR
Há pessoas que não gostam
do Carnaval. Há pessoas que
preferem passar o período em
alguma praia, na serra ou até
mesmo em retiro espiritual. Esse não era bem o caso da minha vizinha, dona Almerinda.
Ela não apenas detestava a folia de Momo; ela se considerava uma inimiga do Carnaval,
que não passava, segundo dizia, de um pretexto para a vagabundagem, quando não para a sacanagem. Não perdia
ocasião de fazer verdadeiros
comícios contra os foliões.
Dona Almerinda não ia, obviamente, ao Carnaval. Mas o
Carnaval ia à dona Almerinda.
É que em nossa rua funcionava
a sede de uma escola de samba.
E muitas semanas antes do
Carnaval começavam os ensaios. Que iam até tarde, com a
batucada a milhares de decibéis. Ninguém dormia, obviamente, mas era uma situação
que todos nós, moradores, aceitávamos, mesmo porque torcíamos pelo êxito da nossa escola.
Todos aceitavam, eu disse?
Disse-o mal. Porque a uma pessoa muito indignava. E esta
pessoa era, naturalmente, a dona Almerinda:
- Esta cambada de vadios
- bradava, a quem quisesse
ouvir - não trabalham e não
deixam descansar aqueles que
trabalham.
Não ficava só no protesto.
Tentou mobilizar os vizinhos
com um abaixo-assinado. Sem
resultado: não conseguiu colher mais que três ou quatro
assinaturas, e duas eram de parentes que lhe deviam obrigações. Ninguém queria transformar os carnavalescos em inimigos. O que deixava dona Almerinda ainda mais furiosa:
- Vocês não passam de uma
corja de medrosos - bradava,
em plena via pública.
O pessoal da escola, naturalmente, não dava a mínima para a reclamação. Continuavam
ensaiando, e à medida que se
aproximava o Carnaval, o entusiasmo crescia. Paralelamente, crescia a revolta de dona
Almerinda. E chegou uma noite em que ela não aguentou
mais.
Faltavam poucos dias para o
desfile. Todos os prognósticos
indicavam que a escola poderia obter uma boa classificação
- quem sabe até levar o primeiro prêmio. Os sambistas redobravam os seus esforços. Os
tamborins ressoavam mais alto
que nunca. As vidraças das casas chegavam a vibrar.
Quem não vibrava era a dona Almerinda. Fechava portas
e janelas, colocava algodão nos
ouvidos - e mesmo assim não
podia dormir: continuava ouvindo aquela batucada infernal. Uma noite não aguentou
mais. Sacudiu o marido, que
dormia à sono solto:
- Acorda, Gervásio. Quero
que você dê um jeito nisso.
Agora: o seu Gervásio, um
bancário aposentado, era excelente pessoa. A ele pouco se lhe
dava que a escola de samba
ensaiasse próximo de sua casa,
mesmo porque, surdo, quase
nada escutava. Mas a dona Almerinda queria um aliado, e o
único que estava por perto era
ele:
- Você vai lá e diz que é
para acabar com essa barulhada já.
O marido ainda tentou ponderar que aquela era uma missão impossível, que ele iria se
incomodar e talvez até levasse
uns tapas. Mas dona Almerinda não queria saber de nada:
vá lá, comandou. Com um resignado suspiro o marido se levantou e foi. Ela ficou à espera,
braços cruzados, batendo o pé,
impaciente.
Passaram duas horas, três
horas e nada, o homem não
voltava. Lá pelas tantas dona
Almerinda começou a se afligir. O que teria acontecido com
o marido? Sem saber o que fazer, vestiu-se e foi até o terreiro. E o que viu quase a fez desmaiar.
O marido estava ali, sim. Mas
não estava, de dedo em riste,
protestando. Estava, sim, dançando animadíssimo com uma
bela mulata, que seguia os passos dele encantada.
Dona Almerinda bateu em
retirada. Porque esta qualidade, pelo menos, ela tinha: sabia
se reconhecer derrotada.
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