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GUERRA URBANA/REAÇÃO
Meninos de 3 e 5 anos são obrigados a encostar as mãos na parede durante incursão de policiais na zona sul de São Paulo
Em favela, Rota 'dá dura' até em crianças
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
MARLENE BERGAMO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICA
A garotinha de três anos mal
sabe falar. Mas a palavra "polícia", pronunciada pela reportagem em uma visita-surpresa à
creche improvisada em um
barraco na favela dos Pilões
(zona sul de São Paulo), faz a
menina -olhos negros, grandes e redondos, e penteado maria-chiquinha- ter uma reação
surpreendente: ela se aproxima
da parede, põe as mãos para
trás e abaixa o rosto enquanto
repete: "Poliça, poliça".
A mulher que cuida das
crianças pede ao menino de
cinco anos que explique o que
acontece. Ele diz: "A polícia entrou aqui, mandou todas as
crianças encostarem na parede
desse jeito e falou que levaria
todos nós para a Febem se a
gente não contasse onde estavam escondidas armas e drogas". O garoto se juntou à menininha, mãos na parede. Mais
sete crianças repetiram o ato.
Uma jovem de 12 anos conta
que o irmão de dez andava na
semana passada por um beco
quando um PM ofereceu R$ 1
em troca de informações: "Onde moram os bandidos daqui?",
perguntou o policial.
"Agora, veja a tragédia que
podia ter acontecido se o menino resolvesse falar alguma coisa para pegar o R$ 1", diz a avó,
que tinha ido à creche, vinda do
trabalho como doméstica, para
pegar as crianças e levá-las ao
barraco da família.
Na última quarta-feira, às
23h30, os becos da Pilões mancharam-se de sangue. Uma incursão da temida Rota acabou
com três mortos.
Idosos, crianças, mulheres,
adolescentes, homens e mulheres, um total de 78 pessoas
-contadas uma a uma-, fizeram questão de acompanhar a
Folha pelas ruelas escuras e
pelos becos da Pilões na tarde e
noite de quinta-feira.
Queriam mostrar o caminho
que os jovens mortos teriam
percorrido até o momento em
que foram obrigados pelos PMs
a se deitar de bruços no chão de
uma área com menos de 16 m2,
chamada de "campo de futebol", para receber os tiros.
O nome "campo de futebol" é
uma relíquia da época em que a
Pilões ainda tinha grandes
áreas livres. Hoje, o "campo"
está ocupado por casas de tijolo
baiano, grudadas umas às outras -só sobrou a pequena área
onde os rapazes teriam sido
chacinados pelos PMs.
Pedido de misericórdia
A moradora de uma casa colada ao "campinho" conta: "Um
dos meninos pedia: "Pelamordedeus, não me mata, deixa eu
ir embora'". Os quatro filhos
dela, pernambucana, doméstica, que ganha dois salários mínimos por mês e acorda às 5h
para trabalhar na Vila Mariana,
já dormiam. A menorzinha, oito anos, acordou no meio da
confusão e se assustou com os
pedidos de misericórdia.
"Eu fiquei com medo de eles
matarem minha mãe também",
disse a menina. "E chorei na
hora em que eles atiraram. Minha mãe falou pra eu não chorar, que, senão, os homens matavam a gente também."
"Cuidado aí", advertem a reportagem. Alguém num barraco acima (é um declive) começou a tomar banho -o corregozinho de água e sabão começou
a molhar os pés de todos.
Os mortos chamam-se Cristiano Augusto Rodrigues, 28, e
os irmãos Jefferson do Carmo
Pereira, 27, e Rogério do Carmo
Pereira, 24.
Um primo de Cristiano dá a
ficha: "Ele sofria de epilepsia.
Tinha quase 30 anos, mas era
como uma criança", diz, referindo-se a um retardo mental.
"Tomava remédios e fazia bico
em reciclagem de plástico."
Jefferson e Rogério eram
metalúrgicos desempregados.
Nos últimos tempos, atuavam
como vigias noturnos em um
estacionamento vizinho à favela. Ganhavam R$ 600 por mês,
sem carteira assinada. Entravam às 23h30 e saíam às 8h30.
Segundo a mãe dos jovens,
46, foi o patrão quem arcou
com os custos do enterro, feito
em urnas de padrão "nobre", na
classificação do serviço funerário municipal, ao preço de R$
1.259 cada uma. "A gente não tinha condições", disse a mulher.
No velório dos filhos, ela se jogou sobre o caixão de Robson, a
janelinha aberta sobre o rosto
do rapaz. Soltou um grunhido
gutural, antinovela da Globo, o
som do desespero.
A dona de um bar na favela
disse que, na noite em que morreram, os rapazes passaram pelo estabelecimento dela para
tomar cerveja. "Quando saíram
para ir trabalhar, deram o azar
de cruzar com a Rota."
"Os policiais chegaram à favela pela rua que margeia a linha de transmissão da Eletropaulo. Lá, recolheram o Cristiano. Foram subindo a favela e
catando quem encontravam."
Os soldados perguntaram
aos rapazes quem tinha "passagem". Rogério disse que, sim,
teve uma bronca com a polícia.
Passou um mês preso, por roubo de dois maços de cigarro em
um posto. Segundo vizinhos, os
demais nem chegaram a responder. Os PMs descarregaram
as armas neles.
"A Rota apaga"
"A mãe dá à luz, a Rota apaga." O dístico, relata um jovem,
soldado do Exército e morador
da favela de Heliópolis, vizinha
à Pilões, é gritado pelos policiais toda vez que invadem a
área. Outra frase de efeito moral é "Deus cria, a Rota mata".
Todos os moradores entrevistados, pessoas que estavam
nas ruas e vielas durante a visita-surpresa da Folha, ou que
foram saindo de suas casas, não
precisaram de estímulo para
falar. Queriam apenas não ser
identificados na reportagem
-medo de represálias dos policiais. Todos narraram cenas do
terror rotineiro que lhes é imposto pelos soldados da PM.
"Eu já tive de trocar três vezes a porta de casa. É que os policiais mandam deixar a porta
só encostada. Se estiver trancada, eles derrubam a pontapés."
"Minha casa tem dois portões de ferro. Não é contra bandido, aqui ninguém rouba ninguém. É pra proteger da polícia." Três mulheres e uma adolescente acusaram a polícia de
abordar as que chegam do trabalho ou da escola, chamando-as de "puta", "vagabunda" ou
"vaca". "Já fizeram isso comigo; eram cinco da tarde e eu estava voltando da escola", diz
uma menina de 12 anos.
Um operário conta que policiais arrombaram sua casa para
pegar uma camisa e, com ela,
limpar os sapatos. "Eu fui lá reclamar na delegacia, mas me
disseram que eu esquecesse:
polícia não faz BO [boletim de
ocorrência] de polícia."
"Eles querem fazer todo
mundo acreditar que aqui [na
favela] só tem bandido, PCC,
mas não é assim. Os caminhões
das Casas Bahia, da Marabrás,
entram sempre aqui e nunca
foram roubados."
"Essas lâmpadas da rua: de
noite, a gente tem de desligar.
Se eles [policiais] entram e encontram as luzes acesas, arrebentam com tiros. Olha só essa
luminária [e aponta para uma,
esburacada, sem lâmpada]."
No enterro dos irmãos, sexta-feira, às 17h40, uma parente,
estudante de direito, reclamou:
"A polícia mata uns jovens bestas e sem futuro como eles, enquanto o bonzão do PCC [refere-se ao líder Marcos Willians
Herbas Camacho, o Marcola],
fica no bem-bom, falando em
celular, recebendo visita e dando entrevista -como se fosse
cantor popular. As coisas estão
de cabeça para baixo, não é?"
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