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OPINIÃO
Direito à cidade
TEIXEIRA COELHO
O rodízio estadual de carros em
São Paulo entra em seu terceiro
ano. Em três anos, não se tomou
nenhuma medida realmente eficaz
de combate às causas da poluição
ou do acúmulo de veículos.
O que devia ser emergencial e
provisório torna-se permanente,
como é praxe no país. É a perenização da falsa solução. Faz-se o
mais fácil, o que dá mais publicidade, o mais demagógico. O resto,
que devia ser o principal, só quando ninguém suportar mais.
Os carros particulares só sairão
das ruas quando houver um sistema de transporte coletivo decente.
É mais do que sabido. Mas se pretende ignorar aqui o que é cartilha
primária no resto do mundo.
Na verdade, algo de novo aconteceu, sim: os lotações. Quer dizer,
mais veículos nas ruas, circulando
de modo ainda mais anárquico, e
mais emissão de poluentes. E a
prefeitura anuncia a construção
de novas garagens subterrâneas na
zona da cidade que integra a área
submetida ao rodízio municipal!
Todos fingem não perceber a
violência dessas trágicas contradições. Enquanto isso, o metrô continua em suas dimensões ridículas
para uma cidade deste tamanho e
os ônibus se apresentam como o
recurso mais eficaz de humilhação
cotidiana de seus usuários.
Parecem veículos policiais ou de
carga, com grades e ferros internos, dirigidos de modo perigoso
para os que vão dentro e para os
que o seguem de fora. A tarifa é
alta, vergonhosos os salários de
motoristas e cobradores (e estes
estão sendo eliminados). Mas, de
conforto oferecido, nem vestígio.
Ar-condicionado em ônibus e
metrô é perfeitamente viável, como em várias cidades grandes do
mundo. Contribuiriam para a
qualidade geral de vida na cidade.
Seriam um instante de civilização.
Nem pensar, dizem as empresas
e a administração pública. Como
de hábito nesta terra, deve-se considerar que os de renda baixa não
o merecem e que não se deve fazer
concorrência ao transporte individual, quer dizer, às montadoras de
veículos. Não há outra explicação.
A cidade se torna inviável. E
"invivível". Está sendo destruída.
A culpa não é dos usuários, como
os discursos oficiais sempre dão a
entender. A responsabilidade é
dos administradores, nas várias
esferas. Se houvesse um plano de
destruição deliberada da cidade, o
resultado não seria mais eficaz.
Neste final de século, é claríssimo que existe um "direito à cidade". A feliz expressão é de Henri
Lefèvre, num pequeno livro publicado há 30 anos, época em que o
caos urbano ainda não se configurava. A cidade não é uma dádiva, é
um direito. Não pode se recusar
aos que estão fora dela; e dentro
dela não podem existir cidades
proibidas, fechadas à circulação.
Mas é isso que acontece. E por lei
-o que é mais imoral e revela a
incúria audaciosa dos administradores e a passividade intolerável
de todos os outros (nós). Não se
sai às ruas por insegurança e porque não há como circular por elas.
É o contrário da idéia de cidade.
Outros fatores trazem sua poderosa contribuição para esse estado
de cidade sitiada (no qual uma das
feridas mais agressivas é a pichação abjeta -porém resistível- de
quilômetros de ruas e casas).
A construção indiscriminada de
shopping centers, que matam o
comércio de rua e eliminam um
ponto de atração para o pedestre,
tem muito a responder nesse processo. A gota d'água simbólica,
porém, é o rodízio que se eterniza.
Não tanto por si mesmo, mas pela
ausência total de iniciativas concretas que tenta encobrir.
A afirmação de um direito à cidade não é feita só em nome de
lazer, estética ou conveniência de
indivíduos e grupos. Quem ergue
essa bandeira não é o "flâneur"
de um outro final de século, o 19.
Esse direito tem tremendas implicações econômicas e sociais.
Sua falência é mais do que a falência da cidade. Cidades podem falir,
como Nova York há alguns anos.
Algumas, como Nova York, se
reerguem. Outras, não. São Paulo
não está indo à falência: com a
cumplicidade geral, está sendo
destruída. E a destruição tende a
ser mais duradoura que a falência.
José Teixeira Coelho Neto, 54, ensaísta e escritor, é professor da Escola de Comunicações e
Artes da USP (Universidade de São Paulo). Coordenou o "Dicionário Crítico de Política Cultural"
(editora Iluminuras)
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