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MOACYR SCLIAR
Ele (ex-ela) e ela (ex-ele)
Casal muda de sexo na Hungria.
Uma equipe de cirurgiões húngaros
ajudou um casal a trocar de sexo, fazendo do homem uma mulher e da
mulher um homem.
Ciência Online, 16.out.2002
A operação foi um êxito e,
quando acordaram da
anestesia, ele era ela e ela era ele.
Miraram-se com certa surpresa,
pois ele sempre tinha pensado nela como ela e ela sempre tinha
pensado nele como ele, ainda que
em suas respectivas vidas sexuais
ela tivesse desempenhado um papel mais próximo ao que a ele caberia se ele, claro, não se sentisse
mais próximo ao perfil que ela,
supostamente, deveria ter. Mas,
depois de muito tempo de engano, haviam optado pela verdade.
Ele se havia assumido como ela,
ela se havia assumido como ele,
daí a cirurgia. Agora se olhavam
surpresos e encantados. Sim, poderiam continuar a viver juntos,
ele, ex-ela, e ela, ex-ele. E seriam,
pelo menos o esperavam, felizes
para sempre, como naquelas histórias do cinema em que ele é ele
mesmo e ela é ela mesma.
Mas não seria o caso. Quando
tiveram alta do hospital e voltaram para casa, começaram a enfrentar problemas inesperados.
A roupa, por exemplo. Tinham
decidido que, simplesmente, trocariam de guarda-roupa; haviam
gasto muito dinheiro com médicos e hospital e agora precisavam
economizar. Mas descobriram
que não era tão simples assim.
Em primeiro lugar, e ainda que
tivessem passado por transes semelhantes, seus corpos eram inevitavelmente diferentes e as roupas também. Quando ele, ex-ela,
foi vestir um terno, constatou que
o casaco lhe dançava no corpo.
Por sua vez, ela, ex-ele, apertada
num vestido, não gostou nada do
que estava vendo. Você não tem
dignidade para usar esse terno,
disse, com irritação, e acrescentou, em tom de deboche:
-Além disso, o nó da gravata
está errado.
Ele, ex-ela, retrucou com irritação:
-Pode ser. Mas não sei para
que usar gravata. Isso não passa
de um símbolo fálico, de uma forma de mostrar quem tem o poder.
Ela, ex-ele, riu, irônica:
-A mim você não pode se
queixar. Não esqueça que abri
mão da minha condição masculina. E da gravata também.
-Espero que você abra mão
desse vestido, respondeu ele, ex-ela. -Está ridículo em você.
Essa foi a primeira de muitas
brigas. Outras se seguiram; ele,
ex-ela, exigiu que trocassem de
lugar na cama. Ela, ex-ele, reclamou que estava trabalhando demais e que caberia a ele, ex-ela,
assumir o papel de homem da
casa.
Estão pensando em voltar aos
médicos que os atenderam para
reverter tudo. A única coisa que
os detém é a perturbadora antecipação de uma identidade, por assim dizer, telescopada, em que
elementos masculinos e femininos estejam uns dentro dos outros, como aqueles tubos dos antigos telescópios. Ser ele, ex-ela, e
ser ela, ex-ele, já é complicado.
Mas ser ela, ex-ele e ex-ex-ela, e
ser ela, ex-ele, ex-ex-ex-ela, deve
ser mais complicado ainda.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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