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QG dos sem-teto
Cerca de 1.200 pessoas precisam seguir regras em prédio invadido, como horário para comer e chegar
ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO
Todo dia eles fazem tudo
sempre igual no número 905
da Ipiranga, quase esquina
com a São João. Há 17 dias,
cerca de 1.200 sem-teto fizeram do endereço, a dois passos do cruzamento cantado
por Caetano Veloso em
"Sampa", quartel-general.
Desde então, a rotina ali é
militar. A rigidez começa nos
horários de refeições, entrada e saída. "Se não botar ordem, quem bota é a polícia",
diz Maria do Planalto, 52, general do movimento.
Os que lá estão vieram de
duas invasões na zona leste,
de onde foram retirados.
Ganhavam R$ 300 mensais do programa emergencial da Secretaria de Habitação para cobrir despesas de
aluguel, mas muitos deixaram de receber em setembro
e invadiram este e outros três
prédios no centro.
Agora, obedecem a ordens
escritas em cartazes afixados
nas paredes descascadas do
prédio imponente de 15 andares, que nasceu como hotel e abrigou um bingo desativado há mais de cinco anos.
Às 4h, um pelotão avançado está a postos. No comando da equipe que vai ao mercadão recolher sobras, está
Rita Almeida Silva, 52. "Só
passa fome em São Paulo
quem tem preguiça", diz ela.
Na última terça, Rita exibia a farta mesa de alimentos
que iriam para o lixo se não
tivessem sido coletados por
ela e 18 colegas. Mamão e
melancia estão no menu do
café, das 7h às 8h40. Terminada a fila, começa o trabalho das cozinheiras para dar
conta dos 35 kg de arroz, 20
kg de macarrão e 10 kg de feijão do almoço.
"O rango daqui é melhor
do que a lavagem servida na
firma", diz Divino Cabral, 47,
motorista, que ganhou o apelido de "bombeiro". Descobriu a cisterna do prédio e resolveu temporariamente o
abastecimento de água.
Ganhou crédito para permanecer, mesmo tendo quebrado uma das regras. Chegou embriagado. "Ultrapassei os limites, mas sou trabalhador e mereço ficar", justificou-se. Ficou, mas "paga os
pecados" como ocupante solitário do 14º andar.
A superlotação nos andares mais baixos é evidente.
Os líderes e postos-chaves ficam no térreo, mezanino e
primeiro andar.
FAXINÃO
É constante o sobe e desce
de baldes de água pela escadaria em caracol. A limpeza
chama atenção: 15 toneladas
de entulho foram recolhidas.
"Essa é a minha suíte presidencial", brinca Denise de
Souza, 36, que fez do apartamento 405 do antigo Hotel
Ipiranga sua "casa".
Dentre os 112 quartos e suítes, o espaço personalizado
pela costureira desempregada pode ser elevado à categoria luxo. Numa mesa lateral
repousa fogão que aquece
água para banhos de caneca
na banheira. Um vaso enfeita
a mesinha improvisada.
Ocupante da suíte 705, a
faxineira Anecielma Lima,
28, mostra as roupas folgadas, graças ao vaivém no edifício sem elevador. Seus braços e pernas começam a ficar
torneados pelo "levantamento" de garrafas e baldes.
SEM SEXO
Como as habitações são
coletivas, sexo é proibido.
"Meu namorado está de castigo", diz Edna Freire, 21. Sobra tempo para a vaidade.
Em um caixote/penteadeira,
as meninas do 101 espalham
xampu e esmalte.
Rezar pode. Antes do almoço, um grupo de dez pessoas se reúne para ler a Bíblia. Leem o Salmo 125: "Os
que confiam no senhor são
como o monte de Sião que
não se abala". Entoam hinos
com fervor de quem espera a
casa prometida.
Com luz apenas nos corredores e áreas comuns, a tevê
é liberada nas transmissões
de jogos, às quartas. O aparelho também é ligado à tarde
para entreter as 297 crianças.
Não dá para precisar quantas pessoas, de fato, vivem
hoje no prédio invadido.
O "censo" da Frente de Luta pela Moradia é feito a partir de nomes afixados nas
portas de cada suíte ocupada. Na 701, a lista é de 29 pessoas. "Tem muita gente que
só passa aqui, toma café e vai
embora", diz Márcia Lima,
41, grávida de oito meses de
gêmeos, que não arreda o pé
dali desde o dia 4.
Cláudia Roberta, 40, também não deixou a trincheira,
mas sonha em garantir sua
moradia definitiva na zona
leste. "Sinceramente, não
gosto do centro, prefiro a periferia", diz. "Aqui tem muita
sujeira, nóia e bandido."
A presença dos invasores
provoca reações. "Vocês não
têm vergonha?", indagou um
senhor que desceu do seu Corolla para protestar contra a
ocupação.
"É preconceito de quem
acha que pobre só pode vir ao
centro para trabalhar, não
para morar", rebate Maria do
Planalto.
Às 22h, o toque de recolher: a portaria se fecha. É hora de apagar as velas.
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