São Paulo, domingo, 22 de março de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
Os filhos do Ratinho


Passados 13 anos da volta à democracia, o Brasil produziu uma geração de jovens descrentes da lei, conformados com a corrupção e tolerantes com políticos pilantras.
Desonestidade e ilegalidade são artifícios indesejáveis, mas, no final, compensam em troca da eficiência.
Esse alarmante perfil está detalhado num levantamento em sete cidades brasileiras, ajudando a decifrar por que um tipo como Ratinho vira ídolo nacional.
Nada menos do que 58% dos entrevistados dizem que "dentro da lei, acaba não se fazendo nada"; 42% apóiam a idéia de que "com um pouco de desonestidade, acaba se fazendo mais".
A ideologia do "rouba mas faz" fincou raízes mais profundas do que imaginamos na juventude. Vale quase tudo, desde que os resultados sejam satisfatórios.
Estamos criando uma geração de cidadãos moralmente incorretos e politicamente imprestáveis?



Com o apoio da Mori/Brasil, a CPM, especializada em levantar opiniões de crianças e adolescentes, investigou como está a percepção sobre ética na política.
Foram entrevistadas crianças desde 9 anos de idade nas cidades de São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e Ribeirão Preto.
"A taxa de cinismo é gigantesca", afirma Orjan Olsen, da Mori/Brasil. Um dado, em especial, o impressionou: 43% concordam com a seguinte frase: " Na minha cidade, só funciona o "rouba mas faz'".
Psicóloga responsável pela pesquisa, Oriana White, da CPM, professora de marketing na Universidade de São Paulo, considera que o fato mais revelador aparece quando os entrevistados são convidados a estimar o número de políticos preocupados com o país.
Resposta: 78% acreditam que o Brasil não tenha mais do que dez políticos dignos de respeito.
Pior: 20% imaginam que nenhum político presta. O que significa um em cada cinco brasileiros jovens.
Razoável supor que, diante de um eventual fechamento do Congresso, não haveria indignação? Provavelmente.



A explicação óbvia para a descrença são os escândalos que não cessam de aparecer pela imprensa.
Todas as votações relevantes do Congresso produzem rumores ou informações de compra de votos e indecorosas barganhas, batendo no Palácio do Planalto; todas as eleições atraem denúncias do uso de dinheiro público ou contribuições ilegais.
Essa é uma geração que, afinal, começou a engatinhar no período Sarney, testemunhou a gestão Collor e viu prosperar lideranças como Paulo Maluf, Orestes Quércia ou Antônio Carlos Magalhães, considerados eficientes apesar dos supostos métodos flexíveis.
Quem mora em São Paulo ouviu Celso Pitta reconhecer, publicamente, que para vencer a disputa valia a pena dinamitar os cofres públicos.
Os jovens não têm, de fato, uma abundância de exemplos para embalar a crença de que a ética na política deveria ser a regra.
Mas, queiram ou não, é quem vai estar no poder em breve, comandando empresas, governos ou universidades.



A causa é, porém, mais profunda. Há uma vivência cotidiana e generalizada da impunidade.
Empresas que não são castigadas por venderem produtos danificados, professores relapsos que permanecem dando aulas e reprovando, a enganação do vestibular, médicos que não respondem por seus erros, planos de saúde cujos contratos são minúsculos nas cláusulas restritivas e gigantescos nas mensalidades.
Quem é assaltado sabe que, dificilmente, a polícia vai pegar o delinquente. A imensa maioria nem sequer dá queixa por furtos.
A falta de ética não está só nos palácios e casas legislativas, mas nas ruas. Imagine se a imprensa cobrisse os hospitais como cobre o Congresso. Será que andar vestido de branco ia pegar bem?



Saída: devemos ensinar nas escolas noções de cidadania e ética como ensinamos matemática.
Viver sem respeitar e conhecer seus direitos é como não saber fazer contas. O erro de cálculo da cidadania é admirar Ratinho como justiceiro.
Não é para menos: afinal, até ministro da Justiça recebe ordens do apresentador; um ministro de um governo em que o presidente promete fidelidade aos direitos humanos.



PS - Uma triste e dignificante história de um adolescente e de um político. Poucos antes de viajar para a praia em fevereiro deste ano, um rapaz de 16 anos resolveu ter uma conversa séria com o pai, um deputado federal.
Queria saber o que ele vinha fazendo para acabar com o problema dos meninos de rua, já que tinha influência tanto a nível estadual como federal.
O adolescente comentou que, quando voltasse de viagem, iria se envolver, ajudando crianças de rua.
O pai ficou acuado, de um lado, mas, de outro, orgulhoso. Foi a última viagem. O jovem Ulisses Peres de Pontes morreu afogado numa praia de Ubatuba.
O pai, o deputado José Aníbal, do PSDB paulista, conseguiu fazer com que o filho de alguma forma sobrevivesse. Ainda traumatizado com a perda, engajou-se em movimentos de proteção a meninos e meninas de rua.
Por estar envolvido em projetos de educação, dando aulas para jovens, estou convencido de que meninos como Ulisses, simbólicos pela lembrança do herói grego, vão converter os filhos de Ratinho.


E-mail:gdimen@uol.com.br



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