São Paulo, domingo, 22 de abril de 2001

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BRIGA NO DIVÃ

Projeto para regulamentar ofício tramita no Congresso e encontra resistência de profissionais

Psicanálise quer seguir "artesanal"

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

O psicanalista se forma como se formam os artesãos, em contato e sob a supervisão dos mais experientes. Sua formação se dá "como um ofício". O aprendizado e a qualificação ocorrem "nas oficinas", que são os institutos de pesquisa e as escolas de formação.
Por conta desse aprendizado "artesanal", que estaria sempre se renovando, a psicanálise não poderá jamais ser regulamentada como profissão.
Esta é a idéia que encabeça o manifesto que desde quinta-feira está percorrendo todas as sociedades, escolas e núcleos de formação de psicanálise do país. É também o argumento usado por essas sociedades para se opor, de forma radical, a um projeto de lei que pretende regulamentar a profissão de psicanalista e que inicia seus trâmites no Congresso.
O autor do projeto é o pastor e deputado Eber Silva (Rio de Janeiro, sem partido). Para ele, "a cobrança caracteriza o exercício de uma profissão, por isso a psicanálise deve ser regulamentada".
O ponto em comum entre o deputado e o tema do projeto está no fato de professar a mesma crença dos pastores psicanalistas que fundaram a Sbop (Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil).
Quem redigiu o projeto foi o pastor e psicanalista Heitor Antonio da Silva, diretor executivo da Sbop. "A profissão de peão de boiadeiro acaba de ser regulamenta, por que não fazer a mesma coisa com a de psicanalista?", pergunta. "Trata-se de um profissional que cuida de pessoas neuróticas, pode fazer um estrago na vida do paciente."
A questão não está no cuidar de gado ou gente, mas na regulamentação de uma prática que nos 90 anos de sua existência nunca foi regulamentada. "A psicanálise prescinde de qualquer regulamentação, e quem está propondo isso está se valendo de conceitos deturpados", diz Ana Bahia Bock, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
O CFP e o Conselho Federal de Medicina participaram dos vários encontros iniciados em setembro, no Hotel Glória, do Rio, reunindo as principais sociedades de psicanálise. Na última reunião foi redigido o manifesto que agora está percorrendo as entidades.
A preocupação começou com a rápida expansão da Sbop que, em oito anos, já formou 2.200 psicanalistas e tem outros 1.500 em formação. A Associação Brasileira de Psicanálise (ABP), a mais antiga do país, formou em 49 anos 980 psicanalistas. "A formação consome anos e se estende pela vida", diz Wilson Amendoeira, presidente da ABP. "Os cursos da Spob duram 320 horas e a análise pessoal é apenas uma exigência vaga. Seus componentes não são reconhecidos no meio psicanalítico."
O projeto de lei conseguiu unir e provocar a ira das quase 200 sociedades de psicanálise que se espalham pelo país. "Somos todos contra a regulamentação", diz Vânia Otero, da Associação de Psicanálise de Brasília.
Pelo projeto, o Ministério da Educação e Cultura estabeleceria os currículos mínimos e as exigências para que alguém saísse com o título de psicanalista. Também definiria as regras para que as sociedades pudessem oferecer a formação. O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, fiscalizaria o desempenho dos profissionais a partir de um código de ética a ser redigido. O CEF, que também participa do manifesto, assim como a Associação Brasileira de Psiquiatria, já manifestou sua oposição.
As sociedades tradicionais argumentam que a formação do psicanalista se dá pela análise pessoal, por cursos teóricos e pela supervisão dos casos clínicos. Seriam requisitos impossíveis de serem definidos ou controlados por qualquer grade curricular. A ética dos profissionais e a tradição das sociedades seriam a garantia de seriedade para o "consumidor".

Sem regras
Olhando pelo lado do paciente, no entanto, alguma forma de regulação da psicanálise poderia ajudar. Numa área sem regras nem parâmetros, o "consumidor" não sabe a quem está pagando nem terá a quem recorrer em caso de se sentir enganado. Sociedades mais novas e pouco conhecidas oferecem cursos de final de semana e mesmo por correspondência.
Por consenso, os grupos de estudo só admitem alunos com curso superior, mas nada impede que aceitem estudantes com o segundo grau. "A regulamentação vem moralizar a profissão", afirma Heitor Silva.
Poderia até ser assim, mas o projeto de lei não ouviu as principais sociedades. Segundo o autor do texto, 29 psicanalistas de seis diferentes sociedades participaram da redação.
Pelo menos seis outros projetos tentando regulamentar a psicanálise, nunca de iniciativa das sociedades, já fracassaram no Congresso. Mesmos nos meios mais tradicionais, no entanto, há aqueles que vêem como inevitável uma certa normatização da psicanálise, decorrência natural de seu crescimento.
Ana Bock fala numa possível "ordenação da perspectiva psicanalista". E Wilson Amendoeira faz a proposta de uma entidade de psicanalistas que se auto-regulasse. Mas regulação ou ordenação nada têm a ver com regulamentação, ressalvam.


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