São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2007

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WALTER CENEVIVA

Impossível distinguir direito e justiça


Derrida tem razão: não há critério bom para distinguir o direito e o justo, acima de qualquer dúvida objetiva

AS ALTERNATIVAS PROPOSTAS por João Batista Natali, nesta Folha, no dia seguinte ao da morte de Luciano Pavarotti, me fizeram pensar na distância entre direito e justiça, dando origem a esta coluna. Todo ser humano é igual aos outros, enquanto titular de direitos da personalidade, mas não na busca de justiça.
A frase "em matéria de justiça alguns são mais iguais que os outros" diz o oposto do que sugere. Na vida sempre se encontra aqueles cujas oportunidades os levam, independentemente do que fizerem, a se diferenciar dos outros, sem dar a impressão de que a distinção existe, para eles, na justiça das vantagens.
O pensador francês Jacques Derrida, em poucas palavras, destacou a dificuldade conceitual na abertura de seu livro "Força de Lei" (coleção "Tópicos" da Martins Fontes, 145 páginas), ao dizer da "ausência de regra, de norma e de critério seguro para distinguir, de modo inequívoco, direito e justiça".
Embora essas questões possam ser ilustradas com maior facilidade nos campos do esporte, das artes (por que Mozart foi tão superdotado e Salieri não?), elas valem para todas as pessoas. Acentuam a mentira da igualdade de todos perante a lei. Pavarotti terá sido tão aquinhoado pela natureza, independentemente da força de seu caráter, dos duros ensaios, das viagens exaustivas, das lutas que o levaram à consagração ou foram apenas seus dotes que o afirmaram como "il tenorissimo" e, depois, verdadeiro "pop star" de nossa época?
A ordem jurídica se concretiza na abertura de oportunidade para todos de terem ou de alcançarem tudo o que for de seu direito. Isso, é óbvio, quando se disponham aos sacrifícios vindos com a disputa de um lugar ao sol, nos limites de cada um. O leitor lembrará casos em que as benesses caem de mão beijada para os favorecidos. A lei e sua força se enfraquecem quando se desloca o foco para a justiça, até porque a avaliação desta requer cuidado e discernimento, para colocações objetivas. Trago um exemplo fora do contexto: a Lei de Imprensa, durante a ditadura, assegurava plena liberdade de expressão, a todos (artigo 1º), mas o direito era pura ficção. Vivia-se, então sob o ato institucional nº 5, pelo qual o detentor da força mudava a lei na medida de sua conveniência. O direito era injusto por si mesmo.
Voltemos a Pavarotti. Num universo com milhares de tenores é possível que alguns deles tenham tido mais qualidade vocal que o cantor recém-falecido. Muitos terão partido para a luta (leal e deslealmente, diga-se), afastando oponentes, abrindo caminho. O sentimento de justiça, que é de limpeza espiritual, quer igualdade plena, mas também reconhece o afastamento da maioria, indisposta para o sacrifício do trabalho incansável.
Derrida tem razão: não há critério bom para distinguir o direito e o justo, acima de qualquer dúvida objetiva. Mesmo assim, é possível sentir a distinção. Intuí-la. Há os ungidos. Há os destinados a ficar para trás. Não significa que aqueles são melhores do que estes. Podem sê-lo para a justiça. Não para o direito. Derrida cita Pascal: "É justo que aquilo que é justo seja seguido; é necessário que aquilo que é mais forte seja seguido". Que cada um interprete a citação como quiser.


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