São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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DANUZA LEÃO

Quanta mesmice


Com tanta civilização, ninguém sabe o que o outro pensa sobre a vida e as coisas do mundo

PARA QUE serve ser civilizado? Para não sair agredindo as pessoas -como aliás tantas vezes se tem vontade-, arrancando os brincos que gostaríamos de ter das orelhas de outra mulher, puxando os cabelos daquela que ousou olhar para seu amado fixamente, para não se atirar no pescoço dos homens que acha irresistíveis e, no caso deles, não sair por aí atacando as moças a torto e a direito.
Ser civilizado é saber que existem leis para frear nossos impulsos mais primários, leis que quando são quebradas acabam em escândalo e cadeia, pelo menos para os pobres.
Mas existe um problema, entre pessoas civilizadas: de tão civilizadas, elas acabam todas iguais. Afinal, a educação, os bons modos, o traquejo, a cortesia, as boas maneiras, nivelam as pessoas -por cima, mas nivelam. Como saber com que tipo de pessoa você está lidando se, pelo menos aparentemente, ela não se altera, não se irrita, não se enerva e tem sempre uma paciência infinita para lidar com os problemas?
Quanto mais civilizadas são, mais parecidas são. Pense um pouco: se você freqüentar sempre um mesmo grupo, vai perceber que os homens se vestem da mesma maneira, bebem a mesma bebida, freqüentam os mesmos restaurantes e passam férias nos mesmos lugares.
Todos têm o mesmo sonho de consumo: ter um apartamento em Nova York ou Paris, se possível no mesmo bairro, se possível no mesmo quarteirão, se possível no mesmo edifício, para viajarem na mesma época e se encontrarem para falar sobre as mesmas coisas. Os filhos freqüentam as mesmas escolas, se casam entre eles e os casais só praticam o adultério entre eles.
Quando viajam e conhecem alguns estrangeiros, sempre têm assunto, pois pertencem à mesma casta, e estão sempre ligados nas mesmas coisas; os restaurantes são sempre os mesmos, pois eles sabem de tudo que se passa no mundo.
Nada, em nenhum deles, é original; dificilmente alguém vai chegar a um jantar sem sapatos ou começar a cantar, entre o primeiro e o segundo prato. Como são muito civilizados, bem educados e conhecem perfeitamente as regras de etiqueta, que são sempre as mesmas, nunca acontece em suas vidas um só momento trepidante. E quando a mulher de um desses homens tão elegantes e civilizados foge com um guitarrista obscuro, ninguém compreende nada.
Essa padronização, no fundo, é uma grande muleta; se todos usam o mesmo relógio, o mesmo terno, a mesma caneta, ficam seguros e protegidos, e a gente fica pensando: se acontecesse uma catástrofe que varresse da Terra essas tais muletas e ficassem todos nus dentro de um parque, sem os sinais exteriores que diferenciam as classes, o que fariam esses homens? E as mulheres, sem seus tailleurs Chanel e suas bolsinhas Prada? Apenas por curiosidade: de que adiantaria a cultura duramente aprendida de saber comer com os talheres certos e a diferença entre um diamante absolutamente branco e um outro amarelado, conhecer em profundidade a obra de Proust e a história da França?
Com tanta civilização, as mulheres não conhecem os maridos, os filhos não conhecem os pais e ninguém sabe o que o outro pensa sobre a vida e as coisas do mundo; a padronização civilizatória é de tal ordem que acaba ninguém conhecendo ninguém, e pouquíssimos se conhecem a si próprios. E um dia a gente vai e morre.


danuza.leao@uol.com.br

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