|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Luzes de Natal são a pichação da classe média
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
As cidades enfeitaram-se de
novo, pelo menos São Paulo
ostenta em cada janela de
apartamento a sua decoração
de mau gosto, a sua papagaiada natalina. Luzinhas piscantes, brancas ou coloridas, arranjadas de qualquer jeito no
tronco e na copa das árvores,
nas sacadas, nas fachadas de
prédios e casas, primam pelo
acúmulo e pela vulgaridade.
A decoração vai manchando
de mais feiúra a cidade já feia:
é uma espécie de pichação.
Mas já não vem da tinta suja
dos jovens pichadores de muros e prédios da periferia dos
centros urbanos -os jovens
semi-analfabetos, alienados,
sem perspectiva, despolitizados, desorganizados ou organizados em hordas de delinquentes forçados a isso pela
economia da exclusão.
As luzinhas limpas são a pichação cafona das classes médias. Elas vêm de dentro de casa, dos lares, da família reunida para a decoração natalina.
Querem encobrir a tinta preta
da outra pichação cotidiana.
A classe média brasileira, assentada no Plano Real -novos-ricos assemelhados aos
que ascenderam no início do
século via revolução industrial, mal comparando-, adotam a estética chamada de
kitsch (cafona) pelos estudiosos e críticos de arte.
O kitsch é uma tendência que
se multiplica endemicamente
nas sociedades de consumo,
dizem os estudiosos. É sinônimo de objeto (obra de arte), situação ou comportamento que
contraria, pela falsificação e
pela vulgaridade, os princípios
mais aceitos da elaboração estética, do bom gosto e da boa
educação. É a redução de formas artísticas complexas a estereótipos, a suvenires de turismo, por exemplo.
Não existiria a obra kitsch
sem o "homem-kitsch", isto é,
seu consumidor, diz um desses
estudiosos. O reino por excelência do kitsch seria, por tudo
isso, o ambiente doméstico, em
que predominam os caprichos
do indivíduo. Daí a decoração
de Natal vir de dentro da casa,
do "lar" cristão.
O kitsch é uma mentira, uma
inautenticidade, uma idealização do real que corresponde
a um gosto médio, acomodado
e nada exigente. É uma pretensão de ser o que não se é.
A luzes de Natal são kitsch e
o kitsch é uma mentira. É a
classe média querendo demonstrar que pode, com p
maiúsculo, brilhar como brilharia o "espírito" iluminado
de Natal. O kitsch é, pois, basicamente, tudo aquilo que passa pelo que não é.
Autêntico (e antikitsch) seria, por exemplo, comemorar
com trevas essa época de trevas, de miséria econômica que
arrasa a vida de milhões de
pessoas, apagar as luzes em
protesto contra o desemprego,
a fome, a desigualdade social,
passar a luz de velas o Natal, o
nascimento do "Salvador".
É nesse sentido (disse outro
estudioso) que se pode falar do
valor positivo dos períodos de
sombras, dos tempos de decadência e desintegração em larga escala. Eles ganham significado supra-histórico, embora,
na verdade, seja somente em
tempos assim que a "história"
se realize na sua plenitude.
Mas a classe média mente sobre o estado de escuridão
-prefere a cegueira da luzes.
E-mailmfelinto@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|