São Paulo, terça, 22 de dezembro de 1998

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Luzes de Natal são a pichação da classe média

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

As cidades enfeitaram-se de novo, pelo menos São Paulo ostenta em cada janela de apartamento a sua decoração de mau gosto, a sua papagaiada natalina. Luzinhas piscantes, brancas ou coloridas, arranjadas de qualquer jeito no tronco e na copa das árvores, nas sacadas, nas fachadas de prédios e casas, primam pelo acúmulo e pela vulgaridade.
A decoração vai manchando de mais feiúra a cidade já feia: é uma espécie de pichação. Mas já não vem da tinta suja dos jovens pichadores de muros e prédios da periferia dos centros urbanos -os jovens semi-analfabetos, alienados, sem perspectiva, despolitizados, desorganizados ou organizados em hordas de delinquentes forçados a isso pela economia da exclusão.
As luzinhas limpas são a pichação cafona das classes médias. Elas vêm de dentro de casa, dos lares, da família reunida para a decoração natalina. Querem encobrir a tinta preta da outra pichação cotidiana.
A classe média brasileira, assentada no Plano Real -novos-ricos assemelhados aos que ascenderam no início do século via revolução industrial, mal comparando-, adotam a estética chamada de kitsch (cafona) pelos estudiosos e críticos de arte.
O kitsch é uma tendência que se multiplica endemicamente nas sociedades de consumo, dizem os estudiosos. É sinônimo de objeto (obra de arte), situação ou comportamento que contraria, pela falsificação e pela vulgaridade, os princípios mais aceitos da elaboração estética, do bom gosto e da boa educação. É a redução de formas artísticas complexas a estereótipos, a suvenires de turismo, por exemplo.
Não existiria a obra kitsch sem o "homem-kitsch", isto é, seu consumidor, diz um desses estudiosos. O reino por excelência do kitsch seria, por tudo isso, o ambiente doméstico, em que predominam os caprichos do indivíduo. Daí a decoração de Natal vir de dentro da casa, do "lar" cristão.
O kitsch é uma mentira, uma inautenticidade, uma idealização do real que corresponde a um gosto médio, acomodado e nada exigente. É uma pretensão de ser o que não se é.
A luzes de Natal são kitsch e o kitsch é uma mentira. É a classe média querendo demonstrar que pode, com p maiúsculo, brilhar como brilharia o "espírito" iluminado de Natal. O kitsch é, pois, basicamente, tudo aquilo que passa pelo que não é.
Autêntico (e antikitsch) seria, por exemplo, comemorar com trevas essa época de trevas, de miséria econômica que arrasa a vida de milhões de pessoas, apagar as luzes em protesto contra o desemprego, a fome, a desigualdade social, passar a luz de velas o Natal, o nascimento do "Salvador".
É nesse sentido (disse outro estudioso) que se pode falar do valor positivo dos períodos de sombras, dos tempos de decadência e desintegração em larga escala. Eles ganham significado supra-histórico, embora, na verdade, seja somente em tempos assim que a "história" se realize na sua plenitude.
Mas a classe média mente sobre o estado de escuridão -prefere a cegueira da luzes.

E-mailmfelinto@uol.com.br



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